Militância on-line
Os cariocas trocam o discurso vazio pelo engajamento em mobilizações que atraem uma multidão de simpatizantes na internet e ajudam a resolver ou a chamar atenção para os problemas da cidade
Qualquer pessoa que conheça minimamente os bastidores do Poder Legislativo sabe como são complexos os caminhos para uma lei sair do papel. As coisas pioram quando as propostas são pouco populares entre os políticos. Nesse caso, seu destino pode ser um limbo burocrático no qual permanecerá indefinidamente. O projeto para a instituição da Ficha Limpa na administração pública fluminense parecia fadado a tal maldição. Por seis meses, o documento hibernou na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa, até o presidente do grupo, o deputado Rafael Picciani, atual secretário estadual de Habitação, virar o centro de uma campanha insólita. Em um único dia, seu endereço eletrônico recebeu mais de 200 e-mails exigindo o desengavetamento do processo. O bombardeio virtual prosseguiu com o envio de centenas de mensagens para o perfil de Picciani no microblog Twitter. A ofensiva foi concluída com uma petição eletrônica assinada por 2?000 cariocas. A estratégia se repetiu por seis semanas, tomando como alvo os responsáveis por cada etapa da tramitação do projeto na Casa, até que a lei finalmente foi aprovada em janeiro deste ano. Toda a operação, digna de um hacker, foi orquestrada em um escritório em Laranjeiras e comandada pelo cientista político Miguel Lago, 24 anos, da organização não governamental Meu Rio. Sem nenhum vínculo partidário, a entidade tem como objetivo tornar as decisões governamentais mais transparentes à população. “A internet e as redes sociais se transformaram em ferramentas que nos permitem participar dos processos de decisão de forma inédita”, avalia Lago.
O jovem que perturbou os deputados da Alerj não é o único a usar a internet para mobilizar simpatizantes de uma causa. É crescente o número de cariocas que começam a deixar de lado o discurso vazio e tomam para si a tarefa de precipitar, eles mesmos, mudanças que façam da cidade um lugar melhor para viver. Dotados de olhar arguto e afiado senso crítico, eles estão atentos a problemas específicos ou localizados que muitas vezes são ignorados pelo restante da população. Há dois meses, o surfista e webdesigner Marcos Braz, morador da Rocinha, decidiu dar vazão à sua indignação com o esgoto e o lixo que emporcalham a Praia de São Conrado. Com um grupo de amigos, ele resolveu fundar um movimento para despoluir o local. Criou um perfil no Facebook batizado de Salvemos São Conrado, no qual são publicadas diariamente fotos que denunciam as precárias condições daquele trecho da orla. “Antes, ficávamos na praia reclamando. Agora, o mundo inteiro pode ver o crime ambiental que acontece aqui”, diz. A página conta com 2 500 seguidores e cresce ao ritmo de 200 novos integrantes por semana. As fotos de Braz e sua turma já chegaram ao Havaí e ao México, onde provocaram protestos virtuais indignados entre os surfistas de lá. No Brasil, o grupo conta com o apoio do ex-judoca Flávio Canto e do cantor Gabriel o Pensador. Com todo esse barulho, Braz e seus amigos acabaram por conseguir uma audiência com o secretário estadual de Ambiente, Carlos Minc. Sensível aos apelos dos rapazes, ele se comprometeu a iniciar as obras de ampliação da rede de esgotos no bairro até o fim do ano. Se ficar só no discurso, a turma promete fazer alarde.
Em uma metrópole famosa mundialmente por suas belezas naturais, é de esperar que a ecologia funcione como um ímã irresistível para cidadãos interessados em plantar o bem com as próprias mãos. Existem vários exemplos. A Muda Rio, organização fundada pela paisagista Beatriz de Santiago, tira proveito dessa vantagem e estimula a adoção de jardins da cidade por empresas e indivíduos. O Arquipélago das Cagarras, localizado em frente à Praia de Ipanema, caiu nas graças do projeto Ilhas do Rio, do biólogo Carlos Rangel, que usa o Facebook para convocar mutirões de limpeza, que retiram o lixo no local. A imundície da Praia de Botafogo é o foco do Quase Maravilhosa, criado pela fotógrafa Maria Mazzillo (veja detalhes nos quadros ao lado). Mas o que não faltam são bandeiras, como a volta dos bondinhos de Santa Teresa e o uso das bicicletas em substituição aos automóveis. Apesar de as propostas e abordagens serem diferentes entre si, quase todas exibem um mesmo traço: uma vez alcançado o objetivo, seus criadores partem para outras campanhas. A ideia é manter as vastas redes de adeptos e continuar fazendo o bem. Um dos melhores exemplos desse reaproveitamento de contatos é o movimento Meu Rio. Com um cadastro de 50 000 e-mails, que servem como principal forma de comunicação e mobilização, uma vez aprovada a Lei da Ficha Limpa, o grupo voltou suas baterias para outros alvos. Há duas semanas, a ONG encampou a causa dos professores, pais e alunos da Escola Municipal Friedenreich, localizada no Maracanã e listada entre os dez melhores colégios públicos do estado. A instituição de ensino deve ser demolida a reboque das obras de revitalização dos arredores do estádio. A campanha montada pelo grupo reivindica do governo mais explicações sobre o projeto e, desde o dia 26, já angariou a simpatia de 4?500 pessoas. “Estamos crescendo ao ritmo de 1?000 adesões diárias”, contabiliza Lago.
Definidos no mundo virtual como ativistas cibernéticos, os militantes on-line costumam se multiplicar em um ecossistema bastante específico. É um ambiente marcado pela alta velocidade na troca de informações, que exige condições técnicas como rede de banda larga abrangente, conexões wi-fi, computadores portáteis e telefones com capacidade de acessar a internet, os smartphones. O Rio, hoje, reúne todas essas características. De acordo com os mais recentes levantamentos das empresas do setor de tecnologia, um em cada dez cariocas que têm celular usa seu aparelho para navegar na internet. Fanáticos por sites de relacionamento, os cariocas não resistem a uma social virtual. Considerando apenas o Facebook, permanecem em média 5,3 horas conectados, contra 4,8 horas dos demais brasileiros. “O que vemos hoje no Rio é um fenômeno que já acontece há algum tempo em cidades como Nova York, Chicago e Boston, onde os jovens passaram a construir os próprios projetos em torno dessas redes”, diz Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas.
O poder dos sites de relacionamento como instrumento de mobilização é indiscutível. Criados nos dormitórios das universidades americanas a partir de brincadeiras de estudantes, eles entraram para a história não só por sua explosiva popularidade como também por funcionar como catalisadores de mudanças sociais e políticas. Entre dezembro de 2010 e o início de 2011, tais mecanismos foram decisivos para a troca de informações e para a organização das manifestações que levaram à chamada Primavera Árabe, uma sucessão de protestos pró-democracia em países de regime fechado como Tunísia, Irã, Líbia e Síria. No Egito, então governado pelo ditador Hosni Mubarak, uma página no Facebook batizada como Tahrir Square (Praça Tahrir, principal ponto de concentração dos opositores do regime, no Cairo) tornou-se um fenômeno ao reunir depoimentos que burlavam as versões oficiais dos acontecimentos no país. Da mesma forma, em nações desenvolvidas como os Estados Unidos, a contestação cibernética foi utilizada para dar corpo a manifestações contra a crise financeira por meio do movimento Occupy, que consiste na instalação de acampamentos em pontos estratégicos de metrópoles como Nova York, Londres e Paris. Criado em Vancouver, no Canadá, o grupo espalhou barracas em 95 cidades de 82 países. Sem propostas concretas, no entanto, tais insatisfeitos desapareceram na mesma velocidade com que ganharam o mundo.
Com uma longa tradição contestatória, o Rio transformou-se em campo fértil para a conjunção entre tecnologia e ativismo social. Centro político do país por quase 200 anos, a cidade sempre se beneficiou da circulação de ideias propagadas por intelectuais e artistas. Tal caldeirão atingiu temperatura de ebulição pela primeira vez em 1904. Na ocasião, a população reagiu de forma violenta à imunização compulsória contra a febre amarela, a denominada Revolta da Vacina. Apesar da motivação um tanto equivocada, tratou-se de uma notória reação à truculência do governo. “O carioca tem uma história rica em mobilizações, voltadas às questões que estão ao seu alcance imediato, no bairro ou na rua em que vive”, diz Ana Maria Mauad, doutora em história social pela Universidade Federal Fluminense. Com o uso maciço de uma rede à qual quase todos estão conectados, há que convir que a chance de chamar atenção e arregimentar pessoas aumenta bastante. Portanto, não fique acomodado. Escolha uma causa justa e lute por ela.