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Deborah Colker estreia espetáculo e luta pela saúde do neto

Coreógrafa mais prestigiada do Brasil prepara-se para estrear "Cão sem Plumas" no Rio e, longe dos palcos, batalha de forma incansável pela cura de Theo

Por Renata Magalhães
Atualizado em 10 jun 2017, 09h05 - Publicado em 10 jun 2017, 09h05
Deborah Colker no cenário de Cão sem Plumas, no Recife: a estreia no Rio está prevista para 27 de julho (Dayvison Nunes/Veja Rio)

Cirque du Soleil é um arrasa-quarteirão do entretenimento mundial. Com seu exército de artistas e vasto repertório, a companhia visita mais de 100 cidades do planeta a cada temporada — em 2016, conquistou 10 milhões de espectadores. A agenda até o fim do ano inclui datas nos Estados Unidos, no Cazaquistão, na Nova Zelândia, em países da Europa e no Brasil (Amaluna estreia no Rio em dezembro). Em maio de 2009, a carioca Deborah Colker entrou para esse time dos sonhos em grande estilo. Estreou Ovo, em Montreal, e consagrou-se como a primeira mulher a dirigir uma montagem da trupe canadense. No mesmo ano, três meses depois, novas emoções, agora no âmbito doméstico e de natureza bem diversa: seu primeiro neto, nascido em 21 de agosto de 2009, veio ao mundo acometido por uma doença rara, a epidermólise bolhosa. Caracterizada por sensibilidade extrema da pele, que resulta em lesões frequentes por todo o corpo, a enfermidade de Theo mudou de forma drástica a rotina da família. Até hoje. Na etapa inicial da turnê de seu mais novo espetáculo, Cão sem Plumas, o primeiro após o aclamado trabalho na abertura da Olimpíada, em 2016, Deborah passa quinze dias no Brasil e a outra metade do mês em Minnesota, estado do norte dos Estados Unidos, envolvida com os preparativos de um transplante de medula que promete melhorar a vida de Theo, de 7 anos.

Designada pela abreviação EB, a doença de Theo é grave, de caráter genético, não contagiosa e ainda sem cura conhecida. Ela manifesta-se em um em cada 100 000 nascimentos. Uma disfunção na estrutura da pele provoca o surgimento de bolhas que, ao mais leve toque, podem evoluir para feridas por todo o corpo, incluindo as mucosas e órgãos internos, como o esôfago. Problemas de alimentação e distrofia nas mãos e nos pés são alguns dos seus efeitos perversos. “O pior momento é o banho, pois o contato com a água machuca. Os curativos também exigem muita atenção e precisam ser trocados de duas em duas horas”, explica Deborah, que, por motivos óbvios, se tornou uma estudiosa da enfermidade, além de grande defensora de campanhas de conscientização sobre o assunto. Um incidente, em 2013, trouxe a público o drama da família. Depois de embarcarem em um avião da Gol, para viajar de Salvador ao Rio, Deborah, a filha, o genro e Theo, então aos 3 anos, foram abordados pela equipe de comissários, que exigia um atestado médico autorizando a viagem do menino. Foi explicado aos tripulantes que a doença não é transmissível, mas deu-se o pior dos impasses: aquele motivado pela ignorância. O voo atrasou, outros passageiros se solidarizaram com Deborah e a solução só veio após a liberação dada por um médico da Infraero. Um processo contra a empresa se arrasta até hoje. “Eles me ofereceram passagens vitalícias. Recusei e sugeri apoio a uma campanha de conscientização, mas não aceitaram, e agora quero a verba para eu mesma fazer isso”, conta a coreógrafa. Para a avó, o episódio só trouxe mais vontade de continuar lutando.

Theo e a irmã, Alice, nascida para se tornar doadora no transplante de medula: “Ela já chega ao mundo com superpoderes”, afirma o rabino Nilton Bonder, amigo da família (Acervo pessoal/Deborah Colker)

Atualmente, a frente mais avançada da árdua batalha da família atende pelo nome de terapia genética. Essa luz no fim do túnel foi apontada pelo médico Nelson Hamerschlak, hematologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e um dos inúmeros profissionais procurados pela coreógrafa. No centro médico da Universidade de Minnesota, o pesquisador checo Jakub Tolar desenvolve um extenso trabalho com o que se mostrou uma possível fonte de tratamento para doenças até então consideradas incuráveis, chamado CRISPR. “Em linhas gerais, consistiria no mapeamento dos genes defeituosos dentro da própria célula, que seria devolvida saudável ao paciente”, explica Hamerschlak. Sempre acompanhando o avanço lento na busca pela cura — dependente de recursos financeiros avaliados em 20 milhões de dólares e, pelo menos, mais dois anos de estudos —, os parentes de Theo passaram a cogitar a opção do transplante de medula, sugerido por Tolar como um paliativo.

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Em janeiro de 2017, o neto de Deborah trocou o Rio pela cidade de Minneapolis, capital de Minnesota. Por aqui, estava matriculado em uma escola particular de Botafogo, curtia passear com seu inseparável patinete e frequentava jogos do Fluminense no Maracanã, levado pelo cantor Toni Platão, marido da coreógrafa. Nos Estados Unidos, vive em um alojamento do Instituto Ronald McDonald, junto com os pais, Clara Colker e Pedro Fulgencio, além da irmã mais nova. A caçula Alice, 1 ano, foi concebida, após três fertilizações in vitro — recurso que visou a erradicar a possibilidade de surgimento da doença e garantir a compatibilidade com Theo —, para tornar-se a doadora ideal na cirurgia do irmão. “A Alice é um milagre que vem para transcender o que a ciência ainda não consegue fazer. Qualquer pessoa que salva uma vida passa pela inacreditável experiência de viver sabendo que fez grande diferença. Ela chega ao mundo com superpoderes”, diz o rabino Nilton Bonder, amigo de Deborah Colker e esteio emocional nos momentos mais difíceis. Na unidade americana da organização sem fins lucrativos, patrocinada pela conhecida rede de fast-food, os quatro dividem espaço com outras famílias em situação semelhante, compartilhando a cozinha e a lavanderia. Quando está por lá, Deborah Colker participa de atividades domésticas e acompanha o tratamento. Uma vez por semana, os moradores da casa, reunidos, divertem-se jogando bingo. “Mudei completamente a minha visão sobre trabalho voluntário e nunca mais vou falar mal do McDonald’s”, conta.

Nos períodos que passou em solo brasileiro ao longo de 2017, entre viagens de até catorze horas de duração, a coreógrafa dedicou-se ao novo trabalho de sua companhia. Primeiro espetáculo após o sucesso como diretora de movimento da cerimônia de abertura da Rio 2016 — vista na TV por público estimado em 3 bilhões de pessoas —, Cão sem Plumas baseia-se no poema quase homônimo (O Cão sem Plumas) de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Engana-se quem pensa que o processo de criação se constituiu de respiros em meio às temporadas em que lidava com o drama familiar. Uma de suas etapas incluiu uma imersão de 24 dias, com todo o grupo, em cidades cortadas pelo Rio Capibaribe, inspiração para o poeta. Em cada parada foram ministradas oficinas para um total de 200 alunos. A experiência, vivida por treze bailarinos, começou por Brejo da Madre de Deus, Fazenda Nova e Belo Jardim, passou por Limoeiro, Nazaré da Mata e Carneiros e terminou no Recife, a terra natal de João Cabral. “Em Belo Jardim, Deborah chorou muito com a realidade da seca e assegurou que não queria mais fazer o espetáculo. Ela dizia que não conseguia falar sobre esse assunto”, conta João Elias, diretor executivo da companhia e ex-marido da coreógrafa.

Passado o choque com a realidade local, ela foi adiante. Na capital pernambucana, Cão sem Plumas foi apresentado no Teatro Guararapes. Na abafada sexta-­feira 2 de junho, antes da estreia, foi promovida uma sessão fechada para alunos de ONGs, entre eles participantes da oficina realizada na ressequida Bom Jardim. Em seguida, durante uma rápida confraternização, desabou um bem-vindo toró — e todos, Deborah inclusive, foram dançar na rua, debaixo da chuva forte. Nas duas sessões oficiais no Recife, nos dias 3 e 4, plateias lotadas assistiram ao espetáculo em que bailarinos interagem com projeções de imagens feitas pelo cineasta Cláudio Assis (A Febre do Rato, Amarelo Manga). Em cena, a cor é pouca e a aspereza, abundante (leia a resenha na pág. ao lado). Na plateia, Inez de Melo, filha do autor, aprovou. “Ela se mostrou preocupada, achava que seria difícil traduzir o que o pai tinha escrito. Depois, disse que eu tinha conseguido”, conta Deborah, orgulhosa. Ela foi apresentada à obra de João Cabral ainda na década de 80, pelo primeiro marido, o fotógrafo pernambucano Cafi. Muitos anos depois, voltou a mergulhar na obra dos versos “como é muito mais espesso / o sangue de um homem / do que o sonho de um homem”. E se comove, mais uma vez. “Estamos tratando do inconcebível e do descaso, mas, ao mesmo tempo, falamos da exuberância e da força que surgem das maiores fragilidades. Isso é muito poderoso e passou a ter um valor muito forte para mim neste momento”, explica, olhos rasos de lágrimas.

(Veja Rio/Veja Rio)

Em nome de Theo, vovó Deborah Colker, 56 anos, acompanha de perto avanços científicos ligados à cura da epidermólise bolhosa. “O cientista e o artista são parecidos. Estão sempre experimentando, buscando novidades e fazendo alquimias sem saber exatamente no que vai dar”, compara. O diagnóstico do neto, logo após seu nascimento, levou-a a rever conceitos. “Será que essa sempre foi minha grande missão e virei uma artista internacional para isso?”, pergunta-se. Sem esperar pela resposta, ela já visitou diversos países para aprender mais sobre a EB. Passou por Áustria, França, Inglaterra, Itália, Argentina e Chile, onde há um grande centro especializado e a doença é chamada de “pele de cristal” — em outras sociedades, os pacientes são conhecidos pela expressão em inglês “butterfly children”, ou “crianças-borboleta”, por terem a pele frágil como as asas do inseto. A decisão pelo transplante de medula, no caso de Theo, chegou após muita ponderação. Há risco de 30% para o receptor. Para a pequena Alice, a doadora, a possibilidade de algo dar errado é nula. Operação semelhante realizada no Brasil, no Hospital Albert Einstein, com apoio dos protocolos de Minnesota, trouxe resultados positivos. “Esperamos que, pelo quadro do Theo, as melhoras sejam igualmente significativas”, afirma o hematologista Nelson Hamerschlak.

Na adolescência, Deborah Colker, 1,60 metro de altura, jogava vôlei. Um diagnóstico de depressão a afastou das quadras do clube Hebraica e de outra paixão, as aulas de piano. A salvação veio pela dança. Em 1979, ela entrou no Grupo Coringa, da coreógrafa uruguaia Graciela Figueroa, e descobriu a nova vocação. Quinze anos depois, em 1994, estreava com companhia própria no Theatro Municipal. O sucesso veio logo em seguida, com os movimentos acrobáticos de montagens como Velox (1995) e Rota (1997). A Cia de Dança Deborah Colker já acumula doze espetáculos de repertório. Um deles, Mix, de 2001, ganhou o prêmio Laurence Olivier, a maior honraria do teatro britânico. Coreografias realizadas para a Copa do Mundo de Futebol na Alemanha, em 2006, a Rio 2016 e o Cirque du Soleil, em 2009, são outras evidências de que a baixinha, diante de novos desafios, sempre se agiganta. O próximo é a operação de Theo, prevista para breve. “A cura da EB, entre tantas outras doenças graves, está perto. A cura da ignorância humana já é mais difícil”, afirma a avó coragem.

Leia crítica da nova peça de Deborah Colker antes da estreia

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