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Cidade em verso e (TODA) prosa

Ouvimos vinte especialistas em MPB para apontar marchinhas e sambas que são a cara deste Rio de 449 anos

Por Sérgio Garcia e Lula Branco Martins
Atualizado em 2 jun 2017, 13h11 - Publicado em 6 mar 2014, 20h00

Vez por outra ocorre uma feliz coincidência de datas entre o aniversário da cidade e a festa mais identificada com ela, exatamente como acontece agora. Neste sábado, 1º de março, celebramos os 449 anos do Rio e também a abertura do Carnaval. Aproveitando o ensejo, VEJA RIO pediu a vinte especialistas em música popular que selecionassem, cada um deles, duas dezenas de canções carnavalescas que seriam a cara da cidade ? por abordar um lugar, um personagem ou um fato marcante de nosso passado, ou ainda por ressaltar um traço característico do jeito carioca de ser. Houve, naturalmente, muitas músicas indicadas por mais de uma pessoa e, ao fim e ao cabo, computados todos os votos, chegou-se a uma lista de quase 180 títulos (veja na pág. 35). Com o resultado nas mãos, debruçados sobre seus versos, verificamos, em seis categorias, quais foram os campeões de citação: o bairro mais festejado, a escola de samba, o fato histórico, a marca do carioca, a favela e até a mazela mais constante nas letras. Como era previsível, a predominância é de sambas e marchas, embora tenha havido certa licença na aceitação de obras da bossa nova e até de um batidão na voz de Fernanda Abreu. Tudo bem, todas representam o espírito da comemoração. Entre os autores destacaram-se Noel Rosa, Braguinha, Herivelto Martins, Paulinho da Viola, e na lista há também belos sambas-enredo, dois deles ? Domingo e Os Cinco Bailes da História do Rio ? figurando entre as dez canções mais votadas. Sim, estamos longe do fim do ano, mas, juntando-se, como agora, aniversário e Carnaval, até que cabe aquela saudação: boas festas!

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Parte da cidade que mais aparece na votação organizada por VEJA RIO, a Lapa tem, digamos assim, o seu biógrafo oficial: Wilson Baptista, que chegou a fazer uma espécie de trilogia sobre o bairro onde morou, formada por Largo da Lapa e Flor da Lapa (essas duas citadas na enquete), além de História da Lapa. Região encostada no Centro, que se fixou no imaginário popular como reduto de malandros e boêmios, teve uma legião de artistas entre seus frequentadores, a exemplo de Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Das canções que a homenageiam, destaque para os versos iniciais de A Lapa, um samba de 1949, de Herivelto Martins e Benedito Lacerda, na torcida para que o bairro recuperasse seus melhores dias: “A Lapa está voltando a ser a Lapa / A Lapa, confirmando a tradição / A Lapa é o ponto maior do mapa do Distrito Federal, salve a Lapa”. Esse mesmo tom de nostalgia seria reforçado em 1965 por Billy Blanco, em Rio do Meu Amor: “Rio de Vasco e Botafogo, América e Bangu / Maracanã vibrando em dia de Fla-Flu… / Do tostão que era bom como a Lapa já foi”. Nenhum desses compositores viveu para ver a virada que há cerca de dez anos aconteceu por lá, com o surgimento de bares, casas de samba, e uma nova juventude badalando no local ? que ainda sofre, porém, com trânsito caótico (piorou quando, há alguns meses, deixaram de fechar parte do bairro nos fins de semana) e muita sujeira na rua.

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Tudo bem que a rima ajuda ? “passarela”, “bela”e por aí vai. Mas certamente não foi por esse motivo que a Portela se tornou a escola mais citada entre todas as canções listadas no levantamento de VEJA RIO. É claro que teve mais influência o extenso rol de grandes compositores apaixonados pela agremiação de Oswaldo Cruz, que a homenagearam em versos de rara beleza ? um escrete que inclui Paulo da Portela, Candeia, Alvaiade, Monarco, João Nogueira, Wilson Moreira e Zeca Pagodinho, além do reforço de cantoras do quilate de Clara Nunes e Marisa Monte. Com o peso da tradição a seu favor, e sabidamente vaidosa, a escola se orgulha de ser a maior campeã do Carnaval, com 21 conquistas. Inclusive, foi hegemônica na década de 40, fase áurea da Rádio Nacional, àquela altura o principal alto-falante do país. Os temas que destacam a Portela na enquete formam um painel variado. Predominam as exaltações e as declarações arrebatadas. Luiz Ayrão, outro autor de relevo, a descreveu no samba Porta Aberta como um “fenômeno que não se pode explicar”, enquanto Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro escancaram que ela é o “grande amor na passarela”, em Carioca da Gema. Mas nem tudo são loas. Entre a ironia e o protesto, O que que Há, Portela?, de Tiãozinho Poeta, menciona o jejum de títulos da azul e branco, que não ganha um Carnaval sozinha desde 1970. “Portela é uma águia altaneira / Não pode voar a vida inteira mais baixo que um beija-flor”, diz um trecho. Quem sabe 2014, com Um Rio de Mar a Mar, seja o ano da grande virada.

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Episódio histórico mais mencionado no balaio das músicas da enquete, a assinatura da Lei Áurea serviu de matéria-prima para obras tocantes. Ela é abordada por Nei Lopes e Cleber Augusto com extremo bom humor em O Ganzá do Seu Leitão, cujos versos retratam um fictício e onipresente personagem nascido em 1888, que sofreu com a gripe espanhola, sambou na Praça Onze e combateu nas duas grandes guerras. Mas é mesmo nos sambas-enredo que o tema deixou sua marca, inspirando obras magistrais. É o mínimo que se pode dizer de Heróis da Liberdade, de Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira, que embalou o Império Serrano em 1969, uma letra também adequada ao momento político sombrio que o país vivia. Ao contrário do Império, que celebrou a liberdade atrelada à abolição, a Mangueira preferiu questionar a real autonomia do negro no país em seu enredo de 1988, 100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão. Os versos de Alvinho, Hélio Turco e Jurandir eram carregados de um lirismo cético: “Será que já raiou a liberdade / Ou se foi tudo ilusão / Será que a Lei Áurea tão sonhada / Há tanto tempo assinada / Não foi o fim da escravidão? / Hoje dentro da realidade / Onde está a liberdade / Onde está que ninguém viu?” Perguntas que, aliás, ainda estão valendo.

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Nenhum morro foi tão decantado quanto o da Mangueira, onde germinou a escola mais popular da cidade. Na mesma medida, nenhum outro foi tão glamourizado. Ao dar acolhida a bambas da linha de frente de nossa música, a região mereceu belos versos de seus ilustres moradores. Cartola, por exemplo, foi preciso ao descrevê-la em Sala de Recepção, uma das canções que mereceram voto. “Habitada por gente simples e tão pobre / Que só tem o sol que a todos cobre / Como podes, Mangueira, cantar?”, quis saber o poeta. Seu parceiro de boemia Nelson Cavaquinho fez a confessional Folhas Secas, com Guilherme de Brito: “Não sei quantas vezes / Subi o morro cantando / Sempre o sol me queimando / E assim vou me acabando”. O lugar exerceu o mesmo fascínio também em “forasteiros”, como o portelense Paulinho da Viola. Ele assina, com Hermínio Bello de Carvalho, Sei Lá, Mangueira, que exibe versos de lirismo transbordante: “Vista assim do alto / Mais parece o céu no chão” e “Em Mangueira a poesia / Num sobe e desce constante / Anda descalça ensinando / Um modo novo da gente viver / De sonhar, de pensar e sofrer”. Hoje, com membros notórios da velha-guarda já falecidos, o batuque na Mangueira sobrevive no Palácio do Samba, como é conhecida sua quadra, no sopé da colina que reúne 18?000 pessoas. Apesar das construções precárias que proliferaram ali, fala mais alto o ardor poético, como diz o hino da escola: “Mangueira, teu cenário é uma beleza / Que a natureza criou”.

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Uma de nossas marchinhas mais conhecidas, Máscara Negra, diz em seu primeiro verso: “Tanto riso / Oh, quanta alegria / Mais de mil palhaços no salão”. De igual modo, É Hoje, samba-enredo da União da Ilha, que, ao lado do Explode, Coração (do Salgueiro), talvez seja o mais popular de todos os tempos, se inicia falando justamente do mesmo sentimento: “A minha alegria atravessou o mar / E ancorou na passarela”. Esse traço da personalidade do carioca ? a alegria ? vem sendo destacado no cancioneiro daqui, desde o começo do século passado. Na enquete de VEJA RIO, dezenas de músicas, tanto antigas como sucessos mais recentes, apontam nessa direção. Uma delas, como indica o próprio nome, o samba A Alegria Continua, de Noca da Portela e Mauro Duarte, ressalta a felicidade do carioca diante da dureza do dia a dia: “Com o sol aparecendo / E a lua indo embora / E a lida tão sofrida, vem pra rua / Mas enquanto houver samba / A alegria continua”. Longe dos ritmos mais comuns no Carnaval, mas incorporada desde os anos 50 ao “som ambiente” do Rio, Valsa de uma Cidade é como se fosse um segundo hino oficial, ficando atrás apenas de Cidade Maravilhosa. Composição de Antônio Maria e Ismael Neto, trata-se de uma ode a este lugar e a esta gente, evidenciando a alegria como uma de nossas marcas: “Rio de Janeiro / Gosto de você / Gosto de quem gosta deste céu, desse mar / Dessa gente feliz”.

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A partir da década de 50, quando a cidade, ainda capital do país, tomou grande impulso de desenvolvimento e teve um aumento considerável na população, os problemas urbanos passaram a aparecer nas marchas e nos sambas carnavalescos. Com fartas doses de picardia e, claro, do bom humor típico dos nossos compositores, foram cantados o trânsito ruim, um sistema de energia elétrica não confiável e, destacadamente, a água ? tanto a sua falta como o seu excesso. Em Cidade-Lagoa, por exemplo, Cícero Nunes e Sebastião Fonseca, em 1959, já falavam de enchentes, num samba de breque famoso na voz de Moreira da Silva, cuja letra parece não ter envelhecido (pelo menos enquanto a piscina embaixo da Praça da Bandeira for apenas uma obra, e não uma realidade): “Esta cidade, que ainda é maravilhosa / Tão cantada em verso e prosa desde os tempos da vovó / Tem um problema, vitalício, renitente / Qualquer chuva causa enchente, não precisa ser toró / Basta que chova mais ou menos meia hora / É batata, não demora, enche tudo por aí / Toda a cidade é uma enorme cachoeira / Que da Praça da Bandeira vou de lancha a Catumbi”. Cinco anos antes, Fernando Martins e Vitor Simon fizeram Vagalume, sobre o outro lado da moeda, a falta de água: “Abro o chuveiro / Não cai nem um pingo / Desde segunda / Até domingo”. E, de modo conexo, aquela conhecida Maria do samba Lata d?Água, de Candeias Júnior, também penava com o abastecimento precário. “Lata d?água na cabeça/ Lá vai Maria… / Maria lava a roupa lá no alto / Lutando pelo pão de cada dia / Sonhando com a vida do asfalto”, diz a letra. Será que a moça da canção poderia imaginar que, em 2014, mesmo o pessoal “do asfalto” ainda sofreria com a falta de água nos canos?

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