O mistério do andar de cima
Era a minha primeira noite em Ipanema, no apartamento que aluguei para passar o período em que o meu ficaria em obras. Trabalhei até tarde e fui dormir às 3h45. Às 6h45 fui acordada por um barulho forte, contínuo, absurdamente irritante: “nheconheco, nheconheco, nheconheco”. E o nheconheco foi aumentando de intensidade e de volume, aumentando […]
Era a minha primeira noite em Ipanema, no apartamento que aluguei para passar o período em que o meu ficaria em obras. Trabalhei até tarde e fui dormir às 3h45. Às 6h45 fui acordada por um barulho forte, contínuo, absurdamente irritante: “nheconheco, nheconheco, nheconheco”. E o nheconheco foi aumentando de intensidade e de volume, aumentando de intensidade e de volume, aumentando de intensidade e de volume e… Pá! De repente o nheconheco parou e a paz se fez.
Lembro-me de ter pensado: “Ô, casal empolgado. Deve ter chegado de uma festa e mandou ver. É isso aí! O amor é lindo!”, aprovei. Demorei quase uma hora para dormir de novo, o meu sono não é fácil. Mas tudo bem. Viva a paixão!
Na noite seguinte, fui para a cama às 4h e às 6h45, em ponto… “Nheconheco, nheconheco, nheconheco”. Era o barulho da mola da cama do vizinho de novo. Já não achei o amor tão lindo assim. “Sério? Isso são horas?!”, rosnei. Levantei, tomei um copo d’água e demorei uma hora e meia pra cair no sono.
Isto se repetiu por cinco dias. Uma semana. Duas. Sempre às 6h45, o mesmo barulho, o mesmo nheconheco.
— Eu não aguento mais! Eu vou lá! — decidi, descontrolada e exausta, depois dos 12 minutos de nheconheco (sim, eu estava cronometrando havia alguns dias). As minhas olheiras estavam enormes, eu tinha envelhecido uns 90 anos.
— Não! Pra quê? O que você vai dizer? — contemporizou meu marido.
— Que eles precisam trocar de cama!
— Vai criar briga com um vizinho que nem é nosso?
— Tá, você tem razão — ponderei. — Então vou comprar um colchão novo e mandar entregar lá!
— Amor! Que grosseria! E que ideia maluca comprar colchão pra um desconhecido!
— Que casal é esse que faz todo dia às 6h45, Carlos? Não existe isso! Não é possível. Todo dia? Todo dia!?
— Deixa eles… Vai ver acabaram de casar.
— E se eles estão casados há anos? E se for um casal que faz todo dia de manhã e depois ainda vai pedalar, correr na praia e nadar no mar? Eu não vou aguentar!
— Eu acho lindo.
— Lindo uma ova! Lindo só porque você dorme que nem pedra e não acorda com o fucfuc!
Outra semana se passou. E todo dia eles faziam tudo sempre igual.
— Andréééé! — liguei enfurecida para o proprietário do apartamento, que era amigo meu. Futuro ex-amigo, pelo andar da carruagem.
— Faaala, Thalitinha! E aí? Tá gostando de Ipanema?
— Odiando! O que é que acontece toda manhã em cima da minha cabeça?
— Menor ideia! — respondeu, às gargalhadas. — É o grande mistério da humanidade.
— Quem mora em cima de você?
— Não sei.
— Como não? Você não sabe se eles são recém-casados ou casados há séculos? Quem é essa gente insuportavelmente animada!?
— Sei lá! Vai que é só uma pessoa se exercitando numa caminha elástica…
É, podia ser uma pessoinha se exercitando na caminha. Seria quase fofinho se não atrapalhasse o meu soninho.
O nheconheco continuou. Todo dia, 12 minutos cronometrados. Especulações surgiram entre os amigos, o pessoal da turma do espanhol, as funcionárias da padaria ao lado, o jornaleiro, a minha avó e a terapeuta. Sim, levei o assunto para a terapia.
— Deve ser um garoto de programa que a cada dia leva uma pessoa pra lá no fim de expediente. Não pode ser um casal, nenhum casal faz TODO DIA nessa empolgação! — disse uma.
— É uma ninfomaníaca que dorme cada dia com um e antes de ir pro trabalho dá um couro no cara. Nenhum casal faz TODO DIA nessa empolgação! — disse outra.
— É qualquer coisa, menos um casal. Nenhum casal faz TODO DIA nessa empolgação! — resumiu um amigo.
O barulho permaneceu e, acredite, piorou: depois da cópula matinal, ou do exercício, o casal, ou a pessoa, resolveu mexer os móveis de um lado pra outro, dar uma repaginada na decoração. Todos os dias. TODOS OS DIAS!
Àquela altura eu estava um zumbi e resolvi encarar o problema de frente. Subi um andar e toquei a campainha. Pra minha surpresa, atendeu uma velhinha bem velhinha, toda enrugadinha, de cabeleira branca e cheiro de naftalina, sorrindo alegremente.
— O-o-oi, eu sou a vizinha de baixo, t-tudo bem? — disse, sentindo meu corpo inteiro encolher. — Queria falar com a pessoa que mora com a senhora. É importante. Ela está me incomodando, mas provavelmente não faz idei…
— Eu moro sozinha.
Oooooi?
— Sozinha? S-s-sozinha?!
— É, sozinha. Os meus filhos moram em Minas, mas eu adoro o Rio. Você é nova no prédio? É do Rio? Quer um café? Gosta de Seinfeld? Eu tenho todos os DVDs de Seinfeld.
Engoli o embaraço e expliquei o que ocorria toda manhã. Ela me olhou com cara de ET empalhado, disse que era viúva, não tinha ideia de onde vinha o barulho e ainda contou que seu único exercício era jogar biriba com as amigas. À tarde.
Pedi pra ver o apê (que vergonha!), nem sinal de caminha elástica. E a cama em que ela dormia era de colchão duro, SEM MOLA! Perguntei se ela mudava os móveis de lugar com frequência e a resposta foi direta:
— Você acha que eu tenho força pra isso, minha filha?
O grande mistério da humanidade continuava. Deus meu! De onde vinha o barulho?
— Talvez do andar de baixo, sei lá… Eco… — cogitou a senhorinha, fofa de doer. — Às vezes isso acontece. Mesmo você tendo a impressão de que vem de cima da sua cabeça, o barulho pode vir de baixo ou do lado, sabia? Vi isso outro dia na televisão. Eu vejo bastante televisão. Vejo mesmo.
Saí de lá perplexa. Sabendo que tinha mais uns meses naquele apartamento, precisava arrumar um jeito de me defender do barulho para continuar a trabalhar, a sorrir, a viver!
O que me salvou foi a dica de um amigo, o “ruído branco” (white noise, em inglês). É simplesmente um ruído que, por ser uma combinação simultânea de sons de todas as frequências, é usado para mascarar outros sons. O chuvisco das televisões de antigamente, uma chuva forte e um ventilador em alta velocidade são exemplos de ruído branco.
E o negócio funciona de uma forma inacreditável. Simplesmente abafa qualquer som que venha de fora do seu quarto e atrapalhe seu sono. É impressionante.
Descobri depois que existem programas que geram o ruído branco que você preferir, com versões para tablets, computadores e até celulares. Como é maravilhosa a tecnologia.
Portanto, para obras no andar de cima, raves na sua rua ou qualquer tipo de vizinho barulhento, já sabe: ruído branco neles! E bons sonhos!
Para mais informações:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ruído_branco
https://www.simplynoise.com
https://freewhitenoise.com