O celular da Fernandona – ou o da Fernandinha
Sentada na praça de alimentação de um shopping, prestes a mergulhar uma batata frita no meu sundae de chocolate sem castanha, fui abordada por uma mulher de seus 45 anos. — Posso sentar aqui? — P-pode, claro… — respondi, olhando em volta e constatando que tinha um mar de mesas desocupadas por perto. Mergulhei a […]
Sentada na praça de alimentação de um shopping, prestes a mergulhar uma batata frita no meu sundae de chocolate sem castanha, fui abordada por uma mulher de seus 45 anos.
— Posso sentar aqui?
— P-pode, claro… — respondi, olhando em volta e constatando que tinha um mar de mesas desocupadas por perto.
Mergulhei a batata na calda de chocolate e no exato momento em que comecei a mastigá-la…
— Você é a menina da Bienal, né?
Engoli às pressas.
— Obrigada pelo ‘menina’…
— Que coincidência te encontrar! Eu estava mesmo pra te escrever, sabia?
— Olha só…
— Tenho uma sugestão incrível pra você.
Até aí tudo bem. Muita gente, muita gente mesmo, tem sempre sugestões incríveis para escritores.
— Por que você não escreve pra meninos?
— Eu escrevo pra meninos e meninas que gostam de rir. Mas fiz pensando neles o Ela Disse, Ele Disse, com um menino protagonista.
— Mas é negócio de cotidiano, né?
— Arrã…
— Pois é. Esquece cotidiano.
— Mas os meus livros são todos sobre o cotidiano dos adolescentes, eu adoro escrever sobre o cotid…
— Es-que-ce! — aumentou consideravelmente o tom de voz. — O que eu tenho pra te dizer vai mudar a sua vida, e pra melhor.
— Arrã…
— Você tem que escrever um livro de capa e espada.
Oi?
Diante da minha cara de interrogação, ela continuou:
— Capa, espada e vampiro. Porque tem que ter vampiro.
— Mas eu sou feliz escrevendo sobre o dia a dia dos adolescentes. E já existem muitos livros sobre vampiros pra eles.
— Iiiih, escritor não tem visão de marketing, mesmo! Você ia lançar moda, boba! Ou você já viu algum livro de capa, espada e vampiro?
Agradeci e fiquei de pensar. Foi só morder mais uma batata que…
— Cê pode me arrumar o celular da Fernandinha?
— Que Fernandinha?
— Torres, ué! É que eu preciso falar com a Fernandona, mas é melhor chegar nela pela filha. Mas tem que ser o celular, telefone de assessor é a mesma coisa que nada, eles nunca passam, acham sempre que é um maluco querendo incomodar.
Que injustiça, por que será, meu Deus?
— Eu não conheço a Fernanda Torres.
— Ah, Thalita… como diria você mesma: fala sério, né? Ela é sua colega de site! Eu sempre leio vocês lá.
— É verdade, mas eu nunca fui apresentada a ela.
— Poxa, quebra esse galho, vai! É um projeto bacana, tem a ver com Nietzsche, com Glauber, com contracultura! A Fernandona vai pirar!
Ô…
— Eu não sei como te ajudar. Realmente não tenho o telefone dela.
Em pensamento, completei: “E se tivesse não daria”.
— Caramba, também não precisa amarrar a cara.
— Eu não tô de cara amarrada. Tô só mastigando.
Pensa que ela foi embora? Nananina! Pegou o celular e ligou pra filha:
— Adivinha com quem eu tô lanchando? Tha-li-ta Re-bou-çaaas!
Lanchando comigo? Ela nem estava comendo!
— Cê fala com a minha filha rapidinho, Thalita? Ela te ama!
Falei com a menina, que foi uma fofa, devolvi o celular e levantei, decidida a deixar o sundae pela metade. Ela levantou junto.
— Thalita, na boa, me arruma o celular da Fernandinha! Ou o email pessoal, pode ser o email pessoal! Pela minha filha, vai!
— Eu realmente não tenho!
— Então me dá o celular do Maneco.
— Maneco? O Manoel Carlos?
— É, Maneco é para os íntimos.
— Pois é, como eu não sou íntima, para mim ele é o Manoel Carlos. E também não o conheço pessoalmente.
— Então pode ser o celular da filha dele, acho melhor chegar nele pela filha.
O celular dela tocou me salvando. Dei um tchauzinho e saí andando sem olhar para trás, pensando no sundae e nas batatas que tive que abandonar.