Gente que fala
Faz uns oito meses que entrei numa de virar malhadora, de trabalhar coxa, braços, abdômen, de comer menos besteira, beber menos refrigerante e de correr. Odeio tudo, menos correr. Esse negócio de corrida é realmente um vício. Gosto de correr na orla (às vezes na areia), mas quando o tempo está ruim vou para a […]
Faz uns oito meses que entrei numa de virar malhadora, de trabalhar coxa, braços, abdômen, de comer menos besteira, beber menos refrigerante e de correr.
Odeio tudo, menos correr. Esse negócio de corrida é realmente um vício. Gosto de correr na orla (às vezes na areia), mas quando o tempo está ruim vou para a esteira da academia do prédio mesmo. Além de queimar calorias, correr me relaxa, aplaca a minha ansiedade e me deixa feliz. Adoro aquele momento de ficar caladinha, silêncio total… Mas um funcionário novo do meu prédio não acha isso, não.
— Correr cansa, né?
— Arrã.
— E faz suar.
— Ô…
— Mas a senhora sua demais, né, dona? Parece até que tem uma torneirinha dentro da senhora. Até embaixo do sovaco a senhora sua. E suar no sovaco é coisa de homem. Com todo o respeito.
Irritada, não consegui dizer mais nada a não ser:
— Suar é bom.
— Não entendo corrida. Acho um esporte meio besta, sabe? Que graça tem correr? Ainda mais numa esteira, olhando pro nada… Mas tem maluco pra tudo. Não que a senhora seja maluca, a senhora tá é cuidando da forma, né?
Fiquei muda, apenas fulminei o cara com os olhos.
— A senhora quer que ligue o ventilador?
— Não, obrigada — agradeci, tentando me compenetrar no exercício.
— A senhora sabe que esse ventilador é uma porcaria, né?
— Não, não sabia.
— Já quebrou, já consertaram, quebrou de novo… Mas ele é coisa de americano, aí já viu, né?
— Já vi o quê?
— Ué, ventilador e televisão têm que ser do Japão. É no Japão que eles sabem fazer coisa eletrônica que funciona, não acha?
Ele não podia monologar em vez de dialogar? Precisava pedir opinião? É tão difícil correr e falar ao mesmo tempo!
Apenas balancei a cabeça, ofegante. Concordaria com toda e qualquer coisa que ele dissesse.
— Tô namorando uma moça que é quase do seu tamanho, naniquinha, naniquinha.
Delícia ouvir que sou naniquinha de um quase-estranho às dez da manhã de uma segunda-feira. Amarrei a cara, num claro sinal de que queria cortar aquele conversê.
Ele não captou.
— Ela é manicure. Atende em casa, viu?
— Arrã…
— É Nyramar o nome dela. Com ípslon. Era com i, mas ela acha mais chique o ípsilon. Vai entender mulher, né?
— Arrã — tentei mais uma vez abreviar o diálogo.
— Tenho o telefone dela aqui, a senhora quer?
— Não, obrigada.
— A senhora sabia que tem gente que o pé baba?
Não! Eu não sabia e não precisava saber!
— Ela contou que tem pé de madame com tanta inhaca e tanto sebo que a sujeira escorre e gruda nas mãos das manicures. É baba de inhaca.
— Olha só… — reagi, nojinho puro, com o café da manhã embrulhando meu estômago.
— A Nyramar é prendada, graciosa, limpinha, não é bonita, mas também não é feia… Tem cara de azeitona, sabe?
— Não — disse, quase curiosa. Como seria uma cara de azeitona? Achei melhor não perguntar. Ele poderia evoluir hooooras sobre o assunto.
— O problema da Nyramar é que ela é bigoduda. Queria tanto que ela tirasse o bigode, mas como é que a gente diz isso pra uma pessoa?
— A gente não diz isso para uma pessoa! — opinei, indignada com a pergunta e com o bigode da nanica da Nyramar.
— Bom, ela pode ser bigoduda, mas cuida das minhas unhas. Corta, lixa, tira cutícula… Uma beleza! E ainda prometeu acabar com a minha unha encravada. A senhora quer ver a unha? — perguntou, já tirando a sandália.
Parei a esteira.
— Olha só, esse é o momento do dia em que eu gosto de ficar quietinha, concentrada no exercício. Não me leva a mal, tá?
Ele levou. Armou a tromba e disparou:
— Cruz credo! Olha, dona, eu só vim puxar assunto com a senhora porque o pessoal do prédio diz que a senhora é simpática, fala com todo mundo. Mas parece que não gostou de mim, né? Tudo bem, tem problema não. Vou voltar pro meu trabalho.
Fiquei incomodada. Eu sou uma pessoa fofa, poxa! Mas não consigo correr e falar. Todo mundo tem direito a um pouco de silêncio. Até eu, que falo pelos cotovelos.
Respirei fundo, liguei a esteira e recomecei a corrida. Olhei para a esteira ao lado e o menino que corria nela sorriu para mim, apontando os fones de ouvido de seu iPod.
— Isso é acessório essencial por aqui.
Não tive como discordar. E nunca mais desci pra correr sem música.