É cada taxista que me aparece… 3
Cansada, com as olheiras alcançando o queixo, depois de um dia exaustivo de trabalho em São Paulo, entrei no táxi no Santos Dumont, disse para onde ia e me refestelei no banco para dar aquela descansadinha providencial. Tudo com o que eu sonhava era o silêncio e o escurinho proporcionado pelos meus olhos fechados. Deu […]
Cansada, com as olheiras alcançando o queixo, depois de um dia exaustivo de trabalho em São Paulo, entrei no táxi no Santos Dumont, disse para onde ia e me refestelei no banco para dar aquela descansadinha providencial. Tudo com o que eu sonhava era o silêncio e o escurinho proporcionado pelos meus olhos fechados.
Deu não…
— Tô arrependidão, a senhora sabe?
Eu devo ter uma cara muito simpática e conversada, mesmo de olhos cerrados.
⎯ Sei…
— É muita besteira que a gente faz na vida, né não?
— Ô…
— E faz sem pensar nas consequências…
Ai, gente! O que o homem fez? Traiu a mulher? Foi pego com a outra pela mulher? Foi pego pela mulher com outro cara? Um taxista? Assaltou um banco? Atropelou um cachorrinho e não deu assistência? Tirou doce da mão de pirralho?
— Eu devia ter pesquisado… Porque tudo na vida é pesquisa, né?
É? Bom, numa hora dessas a gente só concorda.
— É… Só pesquisa.
— Mas a vida é assim, né? A gente faz bobagem pra depois se arrepender.
— Não é?
— O pior é que tá doendo demais. A senhora não imagina a dor!
— Dor de amor? — sucumbi à curiosidade.
— Antes fosse! É dor de dente mesmo! — estourou. — Botei seis implantes dentários! Seis! Olha aqui, ó! — disse, virando para trás com a boca devidamente escancarada, em pleno Aterro do Flamengo. Dava pra ver até as amígdalas do sujeito.
— Arrã… Arrã… — concordei logo, para que ele voltasse a olhar para a frente.
— A senhora diz que isso é implante?
— Nã…
— Não, não diz! A senhora diz que isso tá doendo como o quê?
— Nã…
— Não, não diz! A senhora acha que valeu a pena? Não, não valeu!
— Mas já, já passa… Deve ser recente…
— Recente uma ova! Faz seis semanas hoje! Seis semanas! E eu só no analgésico! Não aguento mais!
— Que analgésico o senhor está tomando? – perguntou meu lado hipocondríaco.
Ele me ignorou.
— E sabe pra que tudo isso? A senhora sabe pra que tudo isso?
— Não… Pra que tudo isso?
— Porque eu queria ficar igual àquele cara do cinema.
— Que cara? De que cinema?
— O Jorge Cluni. O cara tem os dentinhos pequenininhos e ganha todas. Pega geral. O negócio é dentinho, dentinho! Dentão não tá com nada!
— O George Clooney não pega geral… Tem namoros longos, tem…
— Claro que pega! Todo mundo que tem dentinho pega! Dentinho faz o maior sucesso!
— O Rodrigo Lombardi é galã e nas novelas pega geral. E só tem dentão na boca. O Marcello Anthony… Dentão! O Brad Pitt , dentão, Tom Cruise, dentão também… O…
— Ah, a senhora pode parar! Pode parar! — bronqueou, irritadíssimo. — Nunca me liguei nesses caras todos. Por que a senhora não entrou nesse táxi seis semanas atrás? Eu teria desistido. Agora é tarde.
— Desculpa…
Calei a minha boca e afundei no banco.
— A senhora é casada… ou tem namorado?
— Casada.
— Há muito tempo?
— Quinze anos.
— E ele? Dentão ou dentinho?
— Dentão.
— Droga! A vida é muito injusta mesmo, viu? Essa vida não tem nenhum sentido! Nenhum sentido!
Depois desse desabafo, senti que precisava ajudar. Tentar ajudar.
— Olha só, tenho certeza que essa dor vai passar e que o senhor vai ficar muito feliz com os seus dentes novos.
— E que eu vou arrumar uma namorada?
Olha só! Então tudo aquilo, todo aquele esforço, era porque ele se sentia solitário! Deu peninha.
— E que o senhor vai arrumar uma namorada apaixonada por dentinhos!
Ele sorriu e eu fiquei orgulhosa de mim mesma, uma pessoa nitidamente iluminada, que espalha leveza e conforto por onde passa.
— E que eu vou ficar a cara do Jorge Cluni?
Aí já foi demais e não resisti: botei a minha porção adolescente para fora e mandei:
— Fala sério, taxista!