Serpenteando pelas ruas, Boitatá e Céu Na Terra são a essência do carnaval
Precursores das fanfarras, os dois blocos vão além de modismos e desfilam com arranjos sofisticados e homenagens a artistas da música brasileira
Em meio a debates que cercam o carnaval de rua sobre blocos oficiais e não oficiais, o Cordão do Boitatá e o Céu Na Terra seguem dando um show à parte e serpenteando pelas ruas da cidade, independentemente das controvérsias sobre uma tal “oficialidade”. Dois blocos que representam o melhor do carnaval de rua da cidade e que foram precursores desse movimento agora chamado “neo fanfarrismo”.
No último domingo (4), o Cordão do Boitatá, que começou a desfilar em 1996, mostrou o que é fazer carnaval. Lá estavam a música, no centro do desfile; a dança, nas pernas-de-pau douradas em homenagem a Oxum; a performance, com a cobra – o Boitatá –, que vai abrindo alas entre prédios e foliões; as fantasias e os estandartes, que fazem a conexão entre sagrado e profano nesta festa tão mágica.
Ir ao desfile do Boitatá é um ato de liturgia. Não tem como não se emocionar, da escolha do repertório, que mantém a tradição de choros e marchinhas e também quando o bloco se arrisca em sonoridades mais atuais, ao conjunto de pernas-de-pau, estandartes e o mar de foliões.
É emocionante quando surgem os primeiros acordes de “Ó Abre-Alas”, a marcha-rancho mais famosa de Chiquinha Gonzaga, composta em 1899, e que para mim é ainda a música que mais representa o carnaval de rua. Dá vontade de chorar. E segue assim até o fim do desfile, com arranjos incríveis para canções antigas e novas, além de um naipe fantástico de músicos da cena carioca.
“No caso de maestros como Pixinguinha, Duda, Anacleto de Medeiros, buscamos adaptar as orquestrações originais que são de uma construção perfeita. É lindo levar essa sonoridade para a rua. Para as marchinhas, escrevemos arranjos às vezes inspirados no original, outras não. ‘Mulata Bossa Nova’ começa com uma brincadeira com um funk, por exemplo. Em outros ousamos mais na orquestração, como no arranjo para ‘Canto de Yemanjá’. ‘Eu só quero um Xodó’ foi transformado em afoxé, com naipes de harmonia mais coloridos”, explica o músico Kiko Horta, um dos fundadores e responsáveis pelo Boitatá.
Nessa mesma linhagem, outro precursor ao lado do Boitatá é o Céu na Terra. Os dois blocos produzem um trabalho artístico e conceitual profundo, que mergulha nas tradições populares da cultura brasileira. Ao longo do ano, ambos realizam extenso trabalho de pesquisa musical e sobre as festas populares. Por isso, mantêm vivos seus pastoris no tempo das Folias de Reis, suas festas para os santos juninos, entre outras tradições.
O Cortejo do Boitatá acontece sempre no domingo pré carnaval. E foi lá que eu consegui, finalmente depois de tanto trabalho, me jogar nos braços de Momo. A Orquestra de Rua – nome do conjunto de músicos do bloco – saiu com bateria, orquestra de sopros, ala de banjos. Eram 6 tubas, 15 trombones, 15 trompetes, 16 saxofones, 6 flautins, clarinetes, entre outros que se juntaram ali. Banjos tinham uns 10.
Este ano o bloco lançou um novo trabalho musical, o disco ‘Dos pés à cabeça – Na Praça’, apresentado nas duas edições da Casabloco, em Olinda e no Rio. O trabalho celebra os 28 carnavais do bloco com composições inéditas. Em breve, será lançado o segundo, “Dos Pés a Cabeça – Na Rua”, que traz um panorama do vasto repertório e os arranjos originais criados para a Orquestra de Rua.
“Tem Pixinguinha, Capiba, Villa Lobos. Moacir Santos, Baden e Vinicius, Gilberto Gil, Braguinha, Mário Lago, Lamartine, os sambas enredos mais lindos das escolas, afoxés, arranjos tradicionais de grandes maestros de frevo como Duda, Lourival Oliveira”, conta Kiko.
No cortejo de domingo, várias homenagens, entre Chiquinha Gonzaga e Anacleto, mas a que foi dedicada a Pixinguinha foi uma das coisas mais bonitas, com o bloco parado em frente à Casa do Choro, na Rua da Carioca, reverenciando o mestre do gênero. “Carinhoso”, tocada ali pelos metais de feras como Gabriel Gabriel, Thiago, Marcelo Cebukin, encheu de lágrimas os olhos dos que estavam em cima, nas sacadas do centro cultural, e dos que estavam embaixo, músicos e foliões.
O bloco vem tentando recuperar seu trajeto original desde 2013, quando saía da Rua do Mercado, descia pela Rua da Assembleia, Carioca até chegar à Praça Tiradentes. Esse roteiro foi interrompido por conta das obras do VLT, com a promessa de que seria retomado no ano seguinte. Mas aí vieram os “mega blocos”, que ocuparam a centralidade da festa oficial e daquela região. Só em 2023, o Boitatá conseguiu desfilar parcialmente pelo trajeto antigo, o mesmo feito no último domingo.
Nas trilhas do Bituca
Na mesma sintonia, o Céu Na Terra ocupou as ladeiras de Santa Teresa no sábado (3) e trouxe Milton Nascimento para seu desfile. Na homenagem, as canções de Bituca, com arranjos carnavalescos feitos por Marcelo Cebukin e executados pelos integrantes do bloco. Foram nove ensaios que ocuparam a Fundição Progresso, sendo três deles abertos ao público.
Para deleite do público, “Fé cega, faca amolada”, “Paula e Bebeto”, “Maria Maria”, “Para Lennon e MCartney”, “Caçador de mim” e “Vera Cruz”. Os arranjos das músicas do Céu Na Terra são sempre muito elaborados e contemplam vários ritmos, como pagode baiano, samba, marchinha, galope, uma menção aos tambores de Minas, uma levada de percussão com nuances de sopro, tudo muito interessante e sofisticado. Lindo de ver! O Céu Na Terra é mágico.
E ainda teve o bonecão gigante do Milton, feito pelo artista Valdenio Moura, bonequeiro de Campo Grande. “Milton fez 80 anos e se aposentou dos palcos. A ideia veio do Cebukin, que é nosso diretor musical e é amigo do Milton. Inclusive, mandamos os arranjos pra ele saber da homenagem que faríamos. É um personagem importante da nossa música brasileira muito querido e muito amado por todos nós, um grande artista que vai continuar sempre nos nossos corações”, diz Péricles Monteiro, coordenador do Céu na Terra.
A arte da camiseta desse ano ficou a cargo do Dj Zod, outro artista e morador de Santa Teresa, que costuma ter o famoso bondinho no centro de suas narrativas. Aliás, quem começou no Céu na Terra, lá nos primórdios, sabe que o bonde tinha uma participação fundamental no desfile do bloco. Os músicos iam tocando lá dentro, no trajeto que saía do Centro em direção ao Largo das Neves. Era uma delícia ir ali ao lado, cantando as marchinhas que sempre deram o tom do desfile. E ele vai estar lá novamente, na réplica criada para o desfile.
Para quem perdeu o Céu Na Terra e quer se aventurar naquelas trilhas e trilhos desse bloco, ele sai no sábado de carnaval mais uma vez. Mas lembre-se, tem que chegar cedo, porque é o tipo de cortejo pra quem é de fato folião.
Ainda tem muito Carnaval pela frente, e a cidade mais uma vez se confirma como uma das melhores do Brasil para quem busca o carnaval de rua. Não tem nada tão democrático e plural.
Rita Fernandes é jornalista, escritora, presidente da Sebastiana e pesquisadora de cultura e carnaval.