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Por Rafael Mattoso, historiador
Curiosidades sobre o subúrbio carioca
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A força da literatura suburbana

No Dia da Favela, a Festa Literária das Periferias comemora seus 10 anos

Por Rafael Mattoso Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 nov 2021, 18h11 - Publicado em 5 nov 2021, 10h42

Nossa coluna desta sexta (5) começa refletindo sobre a importância do dia 4 de novembro. Há quinze anos, a data entrou no calendário oficial do município do Rio de Janeiro como o Dia da Favela e recentemente, a partir de 2019, a comemoração também passou a ser igualmente reconhecida e oficializada em todo estado.

Mais do que reverenciar a data, acredito que este dia sirva para refletirmos sobre a cidade, o direito à moradia e também sobre a dura desigualdade social que infelizmente vivenciamos cotidianamente Brasil afora.

Desde o gradativo processo de abolição do trabalho escravo, a partir de meados do século XIX, passando pelo combate aos cortiços, fortemente encampado pelo prefeito Barata Ribeiro, e com a volta dos soldados da Guerra de Canudos, em 1897, a favela começou a ocupar o espaço urbano da então capital federal.

Hoje mais 1,7 milhão de pessoas vivem em favelas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Só no município cerca de 23% da população mora em comunidades, ou seja, praticamente a cada cinco cariocas um reside numa das 763 favelas da cidade. Para o IBGE, as “aglomerados subnormais” representam um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais que ocupam de forma irregular um terreno pública ou particular, dispostas geralmente de forma desordenada e densa, e que apresentam carência em serviços básicos.

Mas as favelas são muito mais do que números, denominações técnicas e urbanísticas ou fonte de problemas sociais. As favelas, principalmente através de seus moradores, são potência, resiliência e acima de tudo são espações de produção cultural, diversidade e sociabilidade.

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Da mesma forma que a árvore sertaneja que cedeu seu nome para as favelas aflora neste período do ano, revelando sua beleza na cor branca da paz, os livros com suas páginas brancas também devem registar e levar para o mundo as histórias dos moradores das favelas.

Foto de uma flor da árvore sertaneja chamada Favela
Flor da Favela (Internet/Arquivo pessoal)

Aproveitando o contexto, gostaria de propor um diálogo entre as comemorações do último dia 29 de outubro com esse dia 4 de novembro. Já que no final de outubro, especificamente no vigésimo nono dia do mês passado, celebramos o Dia Nacional do Livro, data associada ao processo histórico que levou ao surgimento da atual Biblioteca Nacional.

Para quem acredita na cultura e na educação como instrumento de transformação, tanto o Dia do Livro como o Dia da Favela se tornam referências na paisagem e no sonho por uma sociedade mais igualitária.

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Sobre a história dos livros no Brasil é importante entender que a nossa Biblioteca Nacional começou ser construída somente após a chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Fugindo das tropas napoleônicas, temendo perder seu grande acervo de registros e histórias, a corte de D. João VI trouxe para o Brasil cerca de 60 mil itens.

Apenas em outubro de 1810 seria oficializada a criação da Real Biblioteca, mas somente após a independência do Brasil foi devidamente reestruturada e oficialmente fundada, em 1825. Atualmente a Biblioteca Nacional ocupa o lugar de maior biblioteca da América Latina, além de ser considerada pela UNESCO como uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo.

Seu papel continua sendo imprescindível, tanto para a salva guarda e preservação do nosso acervo histórico documental, com cerca de 10 milhões de obras, como para e difusão da produção intelectual e científica no país.

A historiadora e professora da UFMG, Ana Paula Sampaio Caldeira, autora do livro “O Bibliotecário Perfeito: O historiador Ramiz Galvão na Biblioteca Nacional”, nos fala sobre a relevância da Biblioteca Nacional e de seu papel na construção da nossa identidade às vésperas do Bicentenário da independência:

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“Acho importante fazermos o exercício de recuarmos um pouco no tempo. Até meados da década de 1870, onde a instituição que hoje chamamos de Biblioteca Nacional era nomeada de outras formas, como Biblioteca Pública e Biblioteca Imperial. A palavra nacional já aparecia, mas dividia espaço com essas outras. Foi só a partir da década de 1870 que a instituição passou a se chamar, efetivamente, Biblioteca Nacional. Eu chamo atenção para isso, porque esta não é uma mudança casual. Ela sinaliza para as relações que essa instituição manteve com um certo projeto de memória nacional, um projeto político, que não poderia prescindir de instituições como a BN. E que projeto era esse? Era um projeto que buscava definir a nação a partir de um passado comum e que conferiu um significado a certos personagens e episódios dentro da lógica de uma identidade única, nacional, que excluía uma série de outros agentes, outros marcos, outras identidades. Eu acredito que pensar a Biblioteca Nacional hoje, às vésperas do Bicentenário, é termos uma oportunidade excelente no sentido de olharmos para esse acervo com novas perguntas, perguntas capazes de colocar defeitos nessa memória nacional. Ou seja, perguntas capazes de olhar para aquele acervo em busca de outras experiências e de outras histórias, que superem a ideia de uma identidade única e homogênea.”

Foto em preto e branco do prédio da Biblioteca Nacional no início do século XX
Biblioteca Nacional (Arquivo Nacional/Internet)

Coincidentemente no mesmo ano que comemoramos o centenário de Paulo Freire, educador que via na alfabetização a chave da aprendizagem, do diálogo, e da possibilidade da ampliação da visão de mundo através da leitura. Neste mesmo ano e dentro do mês de outubro temos os aniversários de 160 anos do poeta negro Cruz e Souza, os 75 anos de Conceição Evaristo e os 10 anos da Festa Literária das Periferias. Sem esquecer que foi num dia primeiro de novembro, de 1922 que Lima Barreto nos deixou, com apenas 41 anos de idade.
Precisamos destacar o poder revolucionários das letras, principalmente por estarmos a poucos dias do Dia da Consciência Negra, do 63° Prêmio Jabuti de Literatura e do início do Terceiro Viradão Cultural Suburbano, que este ano homenageia os 140 anos de nascimento de Lima Barreto.

A professo a Ana Paula Sampaio Caldeira também comentou que: “A importância do livro como instrumento de formação é algo inegável, mas é preciso entender o que se quer dizer quando falamos em formação, porque, no meu entendimento, essa palavra comporta a ideia de nos formarmos como sujeitos e como seres humanos. E isso demanda a possibilidade de nos descentrarmos, de imaginarmos outros mundos, outras histórias, outras possibilidades de viver diferentes daquelas que nós conhecemos. Assim, eu entendo que falar do livro como instrumento de formação é considerar o potencial que o objeto livro tem de nos abrir para mundos outros, diferentes do nosso.”

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Foto de uma menina negra lendo seu livro na escola
(Marcelo Valle/Arquivo pessoal)

O grande mestre Milton Santos costumava dizer que “O centro do mundo está em todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está”. Neste sentido precisamos ressaltar a importância simbólica do aniversario de 10 anos da Flup. A Festa Literária das Periferias sempre apostou na visão dos moradores periféricos, favelados e suburbanos ao contarem suas histórias a parti de suas próprias experiências, visões e realidades.

Este ano a Flup ocupa o morro da Babilônia, entre os dias 30 de outubro e 8 de novembro, depois de já ter passado pelo morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira e Vidigal, entre outros. O tema central da edição deste ano é a oralidade, a cultura falada e o conhecimento passado de geração em geração.

Vale destacar outra iniciativa que ainda está com inscrições abertas até o dia 9 deste mês. Visando fomentar a história do lugar de morada e de suas personalidades a Oficina de Escrita para Jovens: “Dá o Papo Escrito” convoca interessados que além de terem seus textos publicados em livro ainda podem receber prêmio de R0,00.  A iniciativa é mais um importante projeto organizado pelo Encontro Nacional e Internacional das Mulheres na Roda de Samba.

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https://abre.ai/oficinapapoescrito

Cartaz convocando jovens para Oficina de escrita Dá o papo escrito.
(Divulgação/Internet)

Terminamos este texto, propositalmente no Dia Nacional da Cultura, 5 de novembro, com um relato de uma professora da Maré, Patrícia Oliveira*, que em um dia de trabalho numa instituição pública de ensino básico da comunidade da Nova Holanda vivenciou e dividiu a dor de mais um ato de violência:

“O dia que a prova de lógica não teve lógica. 4/11 Dia da Favela.

No dia anterior você já pensa como será a Olimpíada de Matemática com os alunos voltando do Ensino Remoto pós Covid 19. Pega um trânsito danado. Ainda sim conversa com a Coordenadora Pedagógica que vai dar tudo certo.
Queria tanto falar sobre o Dia da Favela!!! Mas vamos fazer a prova de matemática. Lógica pura. Parece simples. Os alunos acreditam que é simples. É lógico! Não. Não é. Onde essas crianças aprenderam lógica matemática com toda a problemática do Ensino Remoto? Pobre tem promoção da operadora para rede social. Mas vamos ler com os alunos. Orientar para que a prova tenha o mínimo de lógica.
Ouvimos os primeiros estalados secos. Toda a escola conhece bem aquela sequência de barulho seco. Todo mundo no chão. O colega professor passa avisando: São entre eles. Estão aqui atrás. Teve uma aluna que pegou a prova. E eu disse que naquele momento não tinha lógica. Queria ver todo mundo da sala. E aos poucos nos juntamos. Aglomeração? Máscara?
_Vamos de gatinho ficarmos todos juntos. Pode dar a mão para o amigo se sentir medo.
Alguns queriam olhar com o argumento que todo mundo morre. A banalização da morte. Outros choravam.
_ Tia, minha mãe não pode vir me buscar. Tá aqui na frente. Eles estão aqui na escola.
Consegui juntar todos. Mas os tiros de fuzil ficaram do nosso lado. Vamos seguir o protocolo: corredor. Fomos de gatinho. E mais uma sequência de tiros junto as paredes de Drywall. Consegui colocar todos com os outros alunos no corredor. Alguém conseguiu um pedacinho com mais concreto para o aluno cadeirante.
Nessa hora a internet não pega direito. Era barulho de vidro quebrando, pneu furando, criança chorando, rindo, querendo fazer xixi. Com a voz firme mas sem gritar pedi a todo o grupo para nos concentrarmos. Precisávamos ouvir. Assim que deu uma parada nas rajadas chegam os responsáveis. E não podemos deixar de pedir para assinar quem está levando a criança.
Vamos descobrir se está todo mundo vivo. Sempre alguém tropeça, chora, treme.
Sangue no chão e muito fuzil na mão. Cadê os governantes? Alguém disse que o policiamento foi reforçado. Onde e para quem? Se isso aconteceu não foi para nós. Favelados com policiamento reforçado? Nem sei se isso é bom.
Ainda sim a solidariedade sempre em primeiro lugar. Troca pneu daqui, puxa o carro quebrado dali. Coloca gelo no joelho!!!
E a prova de lógica no dia sem lógica alguma? Ficou na mesa. Temos que sair logo porque o recado chega rápido. Vai ter volta. Não vai ficar barato pra ninguém.
Todos cansados enfrentando ainda uma pandemia. Prova. Sim prova é o termômetro para saber como está aquela escola, aqueles alunos. Se o professor deu aula direito e o aluno aprendeu. Quer 14º salário? Precisa ser na base da meritocracia.
Como é que se dorme hoje? Como pagar o prejuízo material? Como me reconstruir do prejuízo psicológico?
Favelados tem escola. Então tem oportunidades iguais segundo alguns.
Faz arminha que passa! Com violência tudo passa. Até sua vida passa e acaba rapidinho no dia mas sem lógica da favela.
Nova Holanda, 4 de novembro de 2021.”

* Patrícia Oliveira Professora dos municípios do Rio de Janeiro e Nova Iguaçu. Mestre em Educação. Proped/ UERJ. Membro do grupo de pesquisa kékerè UERJ. Especialista em Educação para as Relações Étnico Raciais CEFET/ Maracanã.

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