Uma arca moderninha
Eternizada pela nata da MPB em discos lançados em 1980 e 1981, a Arca de Noé de Vinicius de Moraes volta ao mercado repaginada. Em homenagem ao centenário do poetinha (que completaria 100 anos no próximo sábado (19)), nomes da nova geração se misturam a medalhões de diversos estilos musicais para cantar clássicos como A […]
Eternizada pela nata da MPB em discos lançados em 1980 e 1981, a Arca de Noé de Vinicius de Moraes volta ao mercado repaginada. Em homenagem ao centenário do poetinha (que completaria 100 anos no próximo sábado (19)), nomes da nova geração se misturam a medalhões de diversos estilos musicais para cantar clássicos como A Casa e O Pato. Do axé a MPB, passando pelo samba e sertanejo, o CD conseguiu agregar o moderno sem perder aquela nostalgia tradicional.
Abaixo você confere um pouco mais sobre o lançamento e três perguntinhas que fizemos para Dé Palmeira, produtor musical do álbum (junto a Susana Moraes, filha de Vinicius, Adriana Calcanhotto e Leonardo Netto), que já pode ser encontrado nas lojas por um preço médio de R$ 24,90.
– Como se deu a escolha dos cantores?
Sempre me reunia com Susana e Adriana, passávamos horas imaginando quem poderia cantar determinada canção. Chegamos a esses nomes por afinidade artística.
– Como foi pensada a releitura de cada canção?
Não teve uma regra definida. Cada canção foi tratada de uma maneira diferente. As gravações começaram em abril desse ano, mas já estamos trabalhando nesse projeto há bastante tempo.
– Há a possibilidade de um show com o repertório do álbum futuramente?
Pouco provável conciliar as agendas dessas pessoas todas, é uma operação muito difícil. Mas… nada é impossível.
Por Hugo Sukman
É uma querida parceira de Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, que abre a nova Arca de Noé dizendo, de seu modo tão pessoal, os versos sobre o arco-íris que aparece para celebrar a algazarra dos bichos que vai se seguir. Outro velho parceiro, Chico Buarque (que recitava na “Arca de Noé” gravada em 1980 os mesmos versos agora ditos por Bethânia), também está presente numa faixa que faria muito gosto ao poeta: um “O pinguim” com jeito de samba antigo, amaxixado, como se fosse arranjado por Pixinguinha (o é por Paulão 7 Cordas) e cantado por Mario Reis (de um jeito cool e humorado do qual Chico, como cantor, é herdeiro). Vemos também outra amiga de Vinicius, Miúcha, ao lado de Paulo Jobim (filho de seu parceiro Tom), fazendo um “São Francisco” com letra e harmonia recuperadas da gravação original de Silvio Caldas, em 1954, sutilmente diferente da versão mais conhecida, cantada por Ney Matogrosso em 80.
Tudo o mais é novidade nesta “Arca de Noé 2013”, as famosas canções infantis de Vinicius e parceiros, recriadas por artistas da música brasileira de hoje, por ocasião do centenário do poeta.
“A ideia básica era essa: atualizar essas músicas, que já estão aí há mais de 30 anos. Era nosso desejo que as pessoas de hoje interpretassem essas canções que fazem sucesso há tanto tempo” – explica Susana Moraes, filha de Vinicius que concebeu o projeto da regravação ao lado de Dé Palmeira, Adriana Calcanhotto e Leonardo Netto. “E era nosso desejo, também, que as novas versões seguissem o espírito aberto, ousado e inquieto de Vinicius. O resultado está aí, versões novas, divertidas, os artistas fora da zona de conforto de cada um”.
As gravações, a maioria produzida por Dé Palmeira e algumas por Adriana Calcanhotto, são novas não só pelos artistas envolvidos mas sobretudo pela forma musical. Logo na faixa de abertura, a épica “A Arca de Noé”, a voz potente de Seu Jorge e o jeito divertido de Péricles (ex-Exaltasamba) recriam a linda melodia de Toquinho emoldurados pelo sofisticado arranjo do americano Miguel Atwood-Ferguson, maestro ligado à cena hip-hop da Califórnia, a partir do arranjo original de Rogério Duprat, mas com caminhos e harmonias novos.
A partir de uma ideia de Dé Palmeira, Caetano e Moreno Veloso transformam “O Leão”, criado por Fagner, num suingadíssimo e inesperado pagode baiano. Enquanto Arnaldo Antunes faz “O Peru” com uma levada country e andina, com instrumentos como um violão tenor venezuelano e o charango.
Mart’nália, com arranjo de sopros de Dirceu Leitte, faz de “O Gato” quase uma trilha de desenho animado. Enquanto Zeca Pagodinho acha uma divisão rítmica louca, daquelas que só ele é capaz, para transformar “O Pato”, originalmente uma valsa, naturalmente em compasso 3/4, num samba em compasso 2/4.
“Fomos para o estúdio, Paulão 7 Cordas e eu, achando que era impossível transformar a valsa em samba” – diz Dé Palmeira. “Aí chegou o Zeca e mandou muito bem. Era como se o pato estivesse no meio de uma roda de samba. O objetivo em todas as faixas era esse, buscar novas formas de se fazer aquelas canções”.
Foi assim que “A Corujinha”, criada magnificamente por Elis Regina há mais de 30 anos de forma densa e dramática, foi transformada numa singela moda de viola por Chitãozinho & Xororó, com arranjo simples de viola caipira e sanfona, remetendo à memória da infância de Susana, quando Vinicius começou a escrever os poemas infantis, e a corujinha representava a melancolia dos fins de tarde na fazenda.
E foi assim também que “A Galinha-d’angola” assumiu sua identidade africana, com Ivete Sangalo e o Buraka Som Sistema (grupo angolano radicado em Lisboa) fazendo com que o samba-reggae da Bahia se encontre com o kuduro angolano.
Ou que Erasmo Carlos faz “O Pintinho” totalmente rock’n roll. Na verdade, ele cria duas vozes para o diálogo entre o pintinho (punk) e o velho galo (iê-iê-iê), com direito a guitarra de Dado Villa-Lobos.
Algumas gravações dialogam mais diretamente com as originais. Mariana de Moraes, por exemplo, apresenta uma gravação da marcha rancho “A Formiga”, bem na tradição da canção brasileira, referindo-se à pegada de Clara Nunes. Marisa Monte também dialoga em “As Abelhas” com o clima Novos Baianos da gravação original de Moraes Moreira. Assim como a Orquestra Imperial recupera, de forma musical totalmente distinta, o clima irreverente criado por Alceu Valença para “A Foca”. As três gravações fazem essa referência e, contudo, mantêm o frescor: são, como as outras, músicas inteiramente novas.
Nova mesmo é “O Elefantinho”, composição de Adriana Partimpim sobre poema inédito de Vinicius. Num clima de cartoon, arranjo jazzy, uma linha de baixo mortal (de Alberto Continentino) e com apenas um acorde, Adriana mantém o clima esperto das músicas infantis de Vinicius. Já “As Borboletas” é quase nova: feita por encomenda da própria Adriana Calcanhotto e lançada no seu disco “Adriana Partimpim 2″ é uma composição de Cid Campos sobre poema até então inédito, agora recriada por Gal Costa com sua banda atual e seus experimentos eletrônicos. E tão diferente que parece até nova é “A Cachorrinha”, de Tom Jobim, e recriada por sua filha Maria Luiza Jobim, numa versão livre e eletrônica, à maneira do trabalho que ela vem desenvolvendo com o duo Opala.
E com tantas e tão ricas transformações, a nova “Arca” se fecha ao som do próprio Vinicius, com Toquinho ao violão, cantando “A Casa”. Como que para lembrar que mudam os tempos, mudam as sonoridades, mas a poesia de Vinicius para crianças, com sua esperteza, sua mistura de lirismo, crueldade e invenção (na tradição da melhor literatura infantil dos contos de fada) talvez seja eterna.
Repertório:
1) “A Arca de Noé” – Maria Bethânia, Seu Jorge e Péricles
2) “O Leão” – Caetano Veloso e Moreno Veloso
3) “O Pato” – Zeca Pagodinho
4) “O Peru” – Arnaldo Antunes
5) “O Gato” – Mart´nália
6) “O Pintinho” – Erasmo Carlos
7) “A Corujinha” – Chitãozinho & Xororó
8) “As Borboletas” – Gal Costa
9) “A Formiga” – Mariana de Moraes
10) “A Galinha-d’angola” – Ivete Sangalo e Buraka Som Sistema
11) “O Pinguim” – Chico Buarque
12) “A Cachorrinha” – Maria Luiza Jobim
13) “O Elefantinho” – Adriana Partimpim
14) “As Abelhas” – Marisa Monte
15) “A Foca” – Orquestra Imperial
16) “São Francisco” – Miúcha e Paulo Jobim
17) “A Casa” – Vinicius de Moraes