Por que precisamos falar sobre Fake News?
A disseminação de notícias falsas é danosa em várias escalas, da saúde mental à democracia
Até poucos anos, há menos de duas décadas, vivíamos em um mundo de experiências compartilhadas, com uma memória coletiva comum: víamos as mesmas novelas e filmes, ouvíamos as mesmas músicas, repetíamos os mesmos bordões. O poder de disseminar conteúdo e fidelizar audiência era detido por algumas poucas empresas, que ditavam as regras do quê e quando seria consumido.
Esse jogo começou a virar com o surgimento das redes sociais. Orkut, Facebook, Instagram e Twitter deram voz à uma massa de pessoas que, até então, só estavam acostumadas a ser audiência. A imagem de um coreto em praça pública, onde todo mundo tem a oportunidade de se expressar, coube como uma luva às redes sociais. Com elas, passamos a gerar e compartilhar conteúdo próprio. E com o passar dos anos, os interesses começaram a se multiplicar até chegarmos aos dias de hoje, em que cada amigo assiste uma serie diferente em streamings diversos. A memória coletiva, de certa forma, está comprometida.
Se por um lado a geração e consumo de conteúdo nunca foi tão democrático, por outro esvaiu-se o mérito do mediador. Uma informação noticiada por uma grande rede de TV ou jornal dificilmente seria vista como mentirosa (mesmo que tendenciosa).
Esse cenário foi terreno fértil para o surgimento – e crescimento exponencial – das famosas fake news: na desobrigação de um mediador isento, inventa-se uma verdade e a passa-se adiante, conforme o interesse de cada um. A capacidade de disseminação do WhatsApp e o mapeamento de dados dos algoritmos foram aliados úteis nesse processo.
Foi na base de disseminação de notícias falsas que eleições foram decididas em vários países do mundo, dentre elas o Brasil. Quantas correntes e notícias falsas, de veículos que nunca ouviu falar, você recebeu nas últimas eleições. Um teste não apenas para nossa paciência, mas também para a saúde mental. Para quem quiser saber mais, sugiro o documentário “Privacidade Hackeada”. Prepare o estômago: é assustador o grau de manipulação de dados – nossos dados! – a favor de interesses alheios, sejam políticos ou comerciais.
Diante de uma maré de mentiras, a checagem dos fatos ganhou papel preponderante. Trabalhos como o da Agência Lupa, a primeira agência de fact-checking do Brasil, ganharão cada vez mais relevância fazendo essa verificação das notícia, separando o que é verdade e o que é mentira: o mediador ganhou relevância novamente.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil também está atento a isso. Os ministros da Corte estão debruçados sobre o inquérito das fake news, que pretende mapear a “máquina de desinformação”, nas palavras do presidente do STF, que se utiliza de robôs e perfis falsos em redes sociais para desacreditar instituições democráticas.
A esta altura, você pode estar perguntando: mas por quê uma psiquiatra está discorrendo sobre fake news? Porque se algumas personalidades são mais propensas a criar notícias falsas, outras tem maior inclinação para consumi-las. E quanto mais nosso cérebro acredita em uma ideia, mais ele encontra subterfúgios que nos fazem defendê-la com veemência, criando um ciclo vicioso difícil de ser quebrado. A origem da desinformação, portanto, não é apenas social, mas também mental. Conhecimento é reflexão. E somente refletindo sobre nós mesmos, como pensamos e agimos, estaremos realmente livres.
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Se você ficou interessado em saber mais, “Fake News: A ciência e a ética da manipulação” é o tema de uma palestra online que acontecerá na página da Clínica Espaço Clif no Facebook, na próxima 4a feira, 19 de agosto, às 20h, coordenada por mim, com mediação da psicóloga Sabrina Presman e participação de André Palmini, Professor de Neurologia na Escola de Medicina da PUC-RS, Natália Leal, diretora da Agência Lupa e do psiquiatra e psicanalista Jurandir Freire Costa. Mais informações nas páginas da Espaço Clif no Instagram e no Facebook.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.