Vida e morte
Meus amigos, quando morrem, continuam fazendo aniversário. No meu coração e na minha memória, onde permanecem guardadas as boas lembranças do convívio, dos momentos divertidos e até mesmo das adversidades da vida. Para isso, tenho o auxílio de uma agenda infalível, ou quase, que me devolve o carinho daqueles que se foram para sempre, mas […]
Meus amigos, quando morrem, continuam fazendo aniversário. No meu coração e na minha memória, onde permanecem guardadas as boas lembranças do convívio, dos momentos divertidos e até mesmo das adversidades da vida. Para isso, tenho o auxílio de uma agenda infalível, ou quase, que me devolve o carinho daqueles que se foram para sempre, mas que eu continuo visitando, levado por uma data, um acontecimento único, qualquer coisa assim. E imagino esses meus mortos queridos ainda apagando velinhas e oferecendo fatias de bolo, imitando os que ainda vivem, mas já distantes deste belo e insensato mundo. Não há nada de anormal ou paranormal nesse meu comportamento. Afinal, para que alguma coisa exista para você, basta que você acredite nela.
Alguns dias atrás encontrei nessa agenda o nome do Bráulio Pedroso, que neste ano está fazendo 80 anos. De vida? Não, de vida ele fez apenas 59, pois morreu em 1990. Está fazendo 80 anos na minha memória e certamente na memória dos que o amaram e o amam. Claro que não haverá nenhuma comemoração, e muito provavelmente os jornais não se lembrarão dele. Mas isso não importa. Se uma única pessoa se lembrar, ele já não será um dos muitos esquecidos. E do Bráulio, com certeza, muitos se lembrarão, como eu me lembro.
A agenda me mostra a data em que ele morreu: 15 de agosto. Uma quarta-feira. Vou ao arquivo e encontro lá o que escrevi, na ocasião, para o Jornal da Tarde (SP) e que foi publicado já no dia seguinte, 16 de agosto. Conto que ele trabalhava na sinopse de uma novela que inauguraria uma nova fase na teledramaturgia do SBT.
Bráulio, contava eu, estava entre os poucos que não repetiam ninguém. Nem a si próprio. Ele era repetitivo numa única coisa: em inovar. Foi assim com Beto Rockfeller, que ficou no ar durante um ano, de novembro de 1968 a novembro de 1969. Criava, com Beto, uma nova linguagem narrativa para as novelas, e por isso virou marco histórico. Posso repetir, hoje, o que afirmava naquele dia de 1990: que nem daqui a mil anos se poderá contar a história da telenovela brasileira sem citar o divisor de águas que representou o “bicão” magistralmente interpretado pelo Luiz Gustavo. E lembrava também que, depois de Beto, todas as outras novelas de Bráulio procuraram caminhos próprios e originais, como, por exemplo, O Cafona (1971), O Bofe (1973) e O Rebu (1975). Qualquer pessoa que se lembre de uma dessas histórias há de concordar que nenhuma delas teve semelhança com outras do gênero.
Por fim, eu contava aos leitores do Jornal da Tarde de um almoço que tivemos duas semanas antes daquele 15 de agosto, em que nos lembramos dos bons tempos da nossa juventude, em São Paulo. E relatava que rimos, rimos muito, principalmente de nós mesmos.
E, encerrando a crônica em questão, revelava que no telefonema que ele me deu, na noite anterior, provavelmente uma ou duas horas antes de morrer, me garantiu que a novela que ia começar a escrever, a pedido do Walter Avancini, encerraria sua carreira na televisão. E foi nesse último contato que ouvi dele a frase: “Isso não é meio de vida, Maneco, mas de morte”. Não pensem, por isso, que ele era pessimista nem que, mesmo sem o saber, estava se despedindo da vida com amargura. Não. O Bráulio tinha um grande senso de humor, como prova toda a obra que deixou no teatro e na televisão, assim como mantinha paixão pela vida. Mas, como todo homem inteligente e divertido, cultivava também o humor negro.
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Terminando de escrever esta crônica sobre o meu amigo Bráulio, 80 anos neste ano, voltei ao livro que estou lendo, As Três Vidas, do português João Tordo. É uma obra admirável, que eu recomendo aos meus possíveis leitores. E, muito a propósito desta crônica, logo na primeira página chama atenção uma epígrafe colocada pelo autor, assinada pelo inglês Douglas Adams, escritor, comediante e pensador original, identificado mais facilmente como autor do Guia do Mochileiro das Galáxias, que pode ser encontrado nas livrarias, numa bela edição da Sextante. Eis o que ele diz: “É curioso que as pessoas usem a expressão vida e morte. A morte não é o contrário da vida, mas sim do nascimento. A vida não tem contrário”.