Sonhos
Tive um sonho assustador: o Pão de Açúcar transformado em gigantesco vulcão, cuspindo fogo, e um rio de lava e cinza descendo a encosta e pondo a população numa histérica fuga. Na continuidade desse sonho, eu e minha mulher pegávamos nossos dois filhos no colo e fugíamos também, mas não de maneira cega, sem […]

Tive um sonho assustador: o Pão de Açúcar transformado em gigantesco vulcão, cuspindo fogo, e um rio de lava e cinza descendo a encosta e pondo a população numa histérica fuga. Na continuidade desse sonho, eu e minha mulher pegávamos nossos dois filhos no colo e fugíamos também, mas não de maneira cega, sem saber para onde ir. Não. Fugíamos para um abrigo contra tornados e vendavais, construído especialmente para situações extremas.
Ao chegarmos ao abrigo, a essa altura já lotado de fugitivos como nós, encontrávamos um ambiente ameno, sem sinal do drama que atingia o Rio naquele momento. Um conjunto formado por piano e quatro violinos executava, de maneira ininterrupta, melodias clássicas, que nos levavam a outros sonhos, mas sonhados com os olhos abertos.
Foi um sonho apenas, mas deixou em mim forte sensação de desamparo, que só acabou quando me levantei e tomei uma ducha de água fria. A razão de tal aventura onírica estava clara: o tornado que atingiu Xanxerê, a pequena cidade de Santa Catarina, já que era sobre isso que falávamos no Café Severino, no dia anterior, eu, Carla, Gabriel e Raul, quando tomávamos um inocente café, acompanhado de uma fatia de bolo de laranja, enquanto a hora do vinho não chegava.
— Um tornado? Mas isso não é coisa dos Estados Unidos? — perguntou uma das garçonetes que ouvia a nossa conversa.
— Sempre imitamos os americanos — comentou outra.
— Mas até na desgraça?
Lembrei às jovens que esse não era o primeiro tornado que acontecia no Brasil. E que a existência deles sempre foi possível, ainda que não chegasse a ser habitual, como nos Estados Unidos. Depois disso, voltamos ao assunto, lamentando as mortes, os desabrigados e os estragos feitos pelo vento.
No caminho para casa, sempre a pé para dar um pouco de trabalho às minhas pernas, lembrei as palavras de minha mãe, que costumava atestar a felicidade de morar no Brasil com um discurso consolador muito comum na época. Dizia ela:
— O Brasil é uma terra abençoada. Não temos terremotos, ciclones, furacões…
Chegando em casa, abri o livro de poemas O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. E logo achei o que procurava, lendo em voz alta para mim mesmo:
“Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu…”
Parei de ler e pensei que seria muito bom ter um sonho assim, com o Menino Jesus descendo do Pão de Açúcar e trazendo uma esperança nova ao nosso coração cansado.
Voltei ao poema. Depois de mostrar o doce convívio com o Deus-criança, o poeta termina com estes versos:
“Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?”