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Manoel Carlos

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Blog do novelista Manoel Carlos
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Prosa miúda

  Papo de bar, papo de café. Jogar conversa fora, sem compromisso, olhando o relógio de vez em quando, mesmo sem hora marcada para coisa alguma. Bocejando, mesmo tendo dormido a noite toda numa boa. Sem dívidas a pagar, sem amor contrariado, sem filho doente, sem vizinho barulhento, sem mulher cobrando. Bons amigos, boa comida […]

Por admin
Atualizado em 25 fev 2017, 19h32 - Publicado em 14 nov 2011, 19h12

 

Papo de bar, papo de café. Jogar conversa fora, sem compromisso, olhando o relógio de vez em quando, mesmo sem hora marcada para coisa alguma. Bocejando, mesmo tendo dormido a noite toda numa boa. Sem dívidas a pagar, sem amor contrariado, sem filho doente, sem vizinho barulhento, sem mulher cobrando. Bons amigos, boa comida e bom vinho.

 

Fechar os olhos para os problemas. De que adianta preocupar-se? Veja bem: se, enquanto você estiver dormindo, estourar a III Guerra Mundial, quando você acordar essa guerra já pode não ser a notícia mais importante do dia. O tempo é veloz, tudo devora.

 

***

 

Consta que, um dia, renomado filósofo da Antiguidade travou um diálogo com um infeliz cidadão de Atenas:

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— O que devo fazer, mestre, para afugentar da minha casa a morte, que lá se instalou e que não se cansa de ceifar, dia após dia, toda a minha família?

— Não faça nada — respondeu o filósofo.

— Apenas se sente na soleira da porta e aguarde. Mais cedo ou mais tarde, a morte há de sair de lá, espontaneamente.

Esse filósofo certamente não fez escola, pois tudo o que aprendemos, desde crianças, é que essa não é a melhor conduta. Há que lutar e superar. Pelo menos é isso que exigem de nós. E o que nós exigimos dos outros. Bradamos ao amigo que acaba de passar por um sofrimento:

— Não se entregue!E quantas vezes estamos mais fragilizados do que aqueles de quem cobramos força e vigor?

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***

 

O que passa mais depressa? Um dia feliz ou um dia infeliz?

Acho que o feliz, porque também nos ensinaram que tudo o que é bom dura pouco. Nós mesmos não acreditamos na felicidade duradoura. Quando estamos alegres, quantas vezes dizemos:

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— Está bom demais para ser verdade!

— Alegria de pobre dura pouco!

— A vida é curta. Tenho de aproveitar!

E esse aproveitar — quando se procura saber o que é — não tem significado igual para todas as pessoas.

Para uns, é tomar uma bebedeira. Para outros, é ir a uma missa e rezar o pai-nosso.

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***

 

Lembro que, quando era criança, a noite que antecedia o dia de Natal custava muito a passar. Eu dormia e acordava sucessivamente, à espera da luz do dia, para poder correr à sala e encontrar os presentes deixados pelo Papai Noel. Minhas irmãs, mais velhas do que eu, ralhavam comigo.

— Se você não dorme, a noite não passa. E eu então apertava os olhos fechados. E, quando o dia raiava e eu saía à rua, exibindo os brinquedos novos, tudo o que eu queria era que o dia fosse eterno. Engolia o almoço, desprezava o lanche, mas num abrir e fechar de olhos ouvia a voz do meu pai:

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— Vamos, já brincou bastante por hoje. Agora entre para tomar banho e ir para a cama.Longa noite, breve dia! E em março, quando voltava para o colégio, a sensação era a mesma: férias curtas, interminável ano escolar!

 

***

 

Quando eu tinha 17 anos, namorei uma menina doente, chamada Esmeralda, porque a mãe tinha paixão pelo romance Nossa Senhora de Paris, que havia lido uma dúzia de vezes na juventude. E Esmeralda, no livro de Victor Hugo, é a linda jovem que desperta o infeliz amor de Quasímodo, que todos conhecem como o Corcunda de Notre-Dame.

Nunca se soube corretamente de que doença minha namoradinha padecia. Falava-se em tuberculose, que era a doença da moda. E com isso, cada vez que a menina tossia, todos se afastavam. Na escola, isolava-se sempre. Acho até que eu gostava dela por causa dessa reclusão, dessa exclusão.

Nosso namorinho não era levado a sério pela minha família, mas ninguém teve reação tão tempestuosa quanto minha tia Elvira, solteirona maliciosa, que, apesar da proclamada piedade, amor ao próximo e inabalável fé em Cristo, entrou em desespero, quando soube, e gritou para mim, histérica:— Namora, mas sem beijo, pelo amor de Deus! Sem beijo!Esmeralda morreu um dia antes de completar 16 anos. Aproveitando a emoção que reinava no enterro, dei um rápido beijo em seus lábios.O primeiro e último.

 

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