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Manoel Carlos

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Blog do novelista Manoel Carlos

No réveillon de 45

Eu estava em Búzios com a família, passando os últimos dias de dezembro. Conversávamos no restaurante do hotel por volta das 22 horas do dia 31. Cada um de nós falava sobre a passagem de ano que marcara a sua vida de maneira inesquecível. Quando chegou a minha vez, falei sobre o réveillon de 1945, […]

Por fernanda
Atualizado em 25 fev 2017, 19h16 - Publicado em 5 jan 2013, 00h20

Eu estava em Búzios com a família, passando os últimos dias de dezembro. Conversávamos no restaurante do hotel por volta das 22 horas do dia 31. Cada um de nós falava sobre a passagem de ano que marcara a sua vida de maneira inesquecível. Quando chegou a minha vez, falei sobre o réveillon de 1945, o primeiro depois do fim da II Guerra. Contei como o conflito mundial havia me impressionado, estudante que eu era de um internato católico, para onde fora despachado em 1944. Os padres do colégio eram espanhóis, viviam grudados ao rádio, ouvindo as transmissões de emissoras europeias. E essa atmosfera contagiava os alunos.
Quando acabei de contar, um velho homem que estava sentado perto da nossa mesa nos falou com a voz pausada:
– Não pude deixar de ouvir o que falavam e fiquei admirado da coincidência de ser também o réveillon de 45 o mais marcante da minha vida.
Eu sorri com simpatia, pedindo a ele que se sentasse à nossa mesa e nos contasse sua história. Ele não se fez de rogado. Acomodou-se e contou para todos nós:
– Éramos cinco jovens. Amigos desde a infância, seguimos ligados na adolescência e juventude. Aconteceu que o mais velho entre nós, Rogério, foi convocado e partiu para a Itália como combatente. Foram tempos de aflição para os amigos, que recebiam informações esparsas e muitas vezes desencontradas. Até que, em abril de 1945, Rogério nos escreveu dizendo que logo estaria de volta. Efetivamente, a guerra acabou um mês depois. Começou então a operação de retorno dos expedicionários. E o nome do Rogério, desde o início, aparecia como soldado desaparecido. Houve muita tristeza, mas manteve-se a esperança. Assim correu o que faltava do ano de 1945, chegando-se a dezembro. Nós havíamos sonhado com um réveillon glorioso em que nós cinco estaríamos presentes, mas isso não seria possível. Paciência. Afinal, mesmo frustrados, precisávamos comemorar com as nossas famílias aquele 1946 que estava para surgir, renovando as esperanças de todos os seres humanos na reconstrução do mundo, após uma guerra tão sangrenta. E assim fizemos. Foi então que se deu o inesperado. Já perto da meia-noite, o amigo Rogério, até então desaparecido no campo de batalha, fez uma entrada triunfal na festa.
Todos nós estávamos admirados. E ele continuou:
– O que se seguiu, não existem palavras que possam contar. Estávamos todos felizes como nunca, com uma alegria regada com muitas lágrimas. E passamos a noite toda a conversar e a tirar fotos com o nosso amigo finalmente reaparecido.
Ele fez uma pausa longa, e eu achei que a história não podia terminar ali. Não terminava mesmo. Ele foi para o desfecho:
– Na manhã seguinte, ao abrir os jornais, o Brasil ficou sabendo que o nome de Rogério já figurava entre os mortos em combate. Seu corpo fora finalmente encontrado e identificado. E logo seria mandado para o Brasil.
O homem nos olhou com os olhos marejados. Após curto silêncio, perguntou:
– O que teria causado em todas aquelas cinquenta ou sessenta pessoas a ilusão de terem visto o Rogério e festejado com ele o réveillon de 1945, se àquela altura ele já estava morto?
Sem resposta, ficamos em silêncio por alguns minutos, até que eu resolvi especular:
– Mas você disse que tiraram fotos durante a festa. Então…
O contador da história cortou com um sorriso:
– Sim, muitas, mas em todas elas, depois de reveladas, a figura do Rogério havia desaparecido. De tal maneira que era de jurar que ele nunca posara para nenhuma delas.
Diante do espanto de todos nós, o velho homem pediu licença e se retirou, com votos de feliz Ano-Novo. E eu ent��o pensei que em histórias dessa natureza não se procura a verdade verdadeira, mas aquela que emociona e que pode nos levar a pensar nos mistérios que ainda regem a vida humana. E que um dia acredito que serão desvendados.
Para quem acredita e também para quem não acredita nessa história, feliz Ano-Novo.

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