Hei de vencer
Fui vendedor ambulante de pequenas placas de um plástico chamado galalite, material do qual nunca mais ouvi falar. Eu caminhava diariamente pelas ruas de São Paulo, entrando em casas comerciais e oferecendo as placas coloridas que ostentavam dizeres de uma proclamada sabedoria popular, tais como “Deus lhe pague”, “O Senhor é meu pastor”, “Que Deus […]
Fui vendedor ambulante de pequenas placas de um plástico chamado galalite, material do qual nunca mais ouvi falar. Eu caminhava diariamente pelas ruas de São Paulo, entrando em casas comerciais e oferecendo as placas coloridas que ostentavam dizeres de uma proclamada sabedoria popular, tais como “Deus lhe pague”, “O Senhor é meu pastor”, “Que Deus lhe dê em dobro o que você me desejar”, “Rir é o melhor remédio”, “Conte até 10 antes de brigar”, “Fiado só amanhã”… Esse último dístico é ainda bastante visível em bares de todo o país, como eu mesmo tenho constatado quando viajo de carro pelo Brasil afora.
Essa informação pitoresca da minha modesta biografia já era do conhecimento dos meus amigos mais antigos e chegados, mas a Carla, nossa charmosa e muito querida companheira do Café Severino, não sabia e ficou surpresa:
— Jura que você foi vendedor ambulante???
Assim mesmo, com três pontos de interrogação.
Posso garantir aos meus possíveis leitores que a Carla não é preconceituosa, e a reação que revelou não foi por considerar menor esse tipo de atividade na escala profissional informal da economia brasileira.
— Com que idade você fez esse trabalho, se com 18 anos já estava na televisão? — quis saber ela.
— Mais ou menos 16 anos. Logo em seguida ao internato de padres espanhóis agostinianos. Na mesma época fui vendedor de assinaturas de revistas e sementes para jardim, além de ter sido também office boy do Banco Noroeste e baleiro do Cinema Rialto, no bairro em que eu morava com meus pais e irmãos.
A Carla nem sequer imaginava o que era um baleiro. Ficou encantada em saber que eu circulava pela sala do cinema antes de a sessão começar e no intervalo entre dois filmes das sessões duplas, e que usava um cesto com as guloseimas, onde prevaleciam as balas de hortelã e anis, que eram um discreto convite aos beijos de hálito perfumado dos casais de namorados.
Voltando ao ambulante, expliquei não ter feito esse trabalho para ajudar minha família, como tantos adolescentes que eu conhecia, mas por espírito juvenil de aventura. O pouco que eu ganhava de comissão gastava em seguida, finda a jornada, com um lanche exigido pela exaustiva caminhada diária.
Era, na pior das hipóteses, um exercício saudável.
Continuando com as informações sobre a venda de porta em porta, contei à Carla que, entre todos esses dísticos da filosofia rudimentar, o campeão era uma plaqueta branca onde se lia a frase de autoajuda que vem atravessando gerações e que é atribuída a Arthur Riedel: “Hei de vencer”.
E, para arrematar, contei que, quando desisti desse trabalho, que se constituiu num grande fracasso comercial, fiz uma imensa fogueira no quintal de casa, onde queimei todas as placas que restavam estocadas. Não aguentava mais olhar para aquelas paredes que pareciam rir de mim, gritando:
“Hei de vencer, Hei de vencer, Hei de vencer…”.