Glória
Em Hamlet, o jovem príncipe ensaia os atores para uma representação diante do rei usurpador e assassino do seu pai. Cria uma pantomima que denuncia a ação criminosa. E diz: “O teatro é a armadilha onde vou apanhar a consciência do rei”. E o teatro, no correr de tantos séculos, tem sido a atividade […]
Em Hamlet, o jovem príncipe ensaia os atores para uma representação diante do rei usurpador e assassino do seu pai. Cria uma pantomima que denuncia a ação criminosa. E diz: “O teatro é a armadilha onde vou apanhar a consciência do rei”. E o teatro, no correr de tantos séculos, tem sido a atividade que mais denuncia, que mais cobra, que mais exige. Que mais forma e aprimora o artista. Que dá a ele as ferramentas necessárias a uma das mais belas e ricas profissões.
Que lhe dá o gesto. Que lhe dá a voz da qual nada se perde da primeira à última fila da plateia.
Gosto de conversar com gente de teatro. Essa gente que escolheu a profissão sagrada de “perder-se para encontrar-se”, como bem definiu o escritor Albert Camus. É muito diferente de gente de cinema e de televisão.
Não há como compará-los. Nem se trata de estabelecer quem é melhor ou pior. É outra coisa. É como uma medalha que se carrega no peito. Uma insígnia, uma distinção. Fazem a diferença. São vaidosos como todo artista, mas sempre desejam mais do que uma capa de revista. Aprenderam que é importante ler e ouvir música.
Uma vez, um jovem ator me falava sobre o Francisco Cuoco, ao lado de quem estava trabalhando numa novela de televisão. Estava admirado da competência, seriedade, disciplina do Cuoco. De como o Cuoco era culto e bem informado.
E eu disse:
— Mas o Cuoco é um homem de teatro.
Um homem de teatro. Acho que a primeira vez que eu ouvi essa expressão, que é mais abrangente do que parece, foi do ator francês Louis Jouvet, mas ela pode ser muito mais antiga e estar perdida entre os séculos. Um homem de teatro é completo. O andar, o sentar-se. Os gestos cotidianos. A voz.
Trabalho ouvindo a rádio MEC, a minha preferida entre todas as outras. E durante a programação, por 24 horas, pode-se ouvir poesia dita por atores e atrizes. Muitos são bons, dá prazer ouvi-los, mas ninguém é tão bom quanto o Paulo Autran. Eu fecho os olhos e ouço os versos de Cecília Meireles, Drummond, Fernando Pessoa… E de tal maneira ele diz esses versos que eu me transporto para um palco imaginário, no qual gostaria de permanecer para sempre. Paulo Autran era um homem de teatro.
Percebo que na televisão há muito descuido com a voz e a dicção dos atores. De alguns deles, perde-se boa parte do que falam. Não é falta de talento, mas de escola. Há que aprender, como em qualquer ofício. E, como diz o velho ditado: ninguém nasce sabendo.
Nada contra a televisão e o cinema, mas há que reconhecer que é em cima de um palco que se aprende o que há de melhor na arte de representar. Sem passar por ele, fica muito difícil alguém dizer: sou um ator.
Sou uma atriz.
Alguns me dirão:
— Mas e a Glória Pires, como é que sabe tanto, é tão completa, tão admirada, se nunca pisou num palco?
E eu direi:
— Ela é simplesmente a exceção que confirma a regra.
A Glória é a glória. Não se explica. Admira-se. Ama-se.