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Por Luisa Mascarenhas, psicóloga e escritora
Autora do livro 'A Vida Virtual Como Ela é'
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A vida após o câncer: precisamos falar mais dela!

Que o Outubro Rosa seja uma chance de lembrarmos que a experiência da doença, suas dores e angústias não terminam ao final do tratamento

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20 out 2022, 10h59

Mês passado comemorei internamente, sem alarde, uma data que para mim é muito importante. Há três anos vivi sem dúvida alguma uma das experiências mais fortes da minha vida. Talvez a mais forte, por mexer em vários setores de forma profunda. Nessa época, descobri um câncer de mama, operei e tratei. Falando assim “descobri, operei e tratei” parece até simples, mas não é nada simples, todos sabem. Mas só sabe mesmo quem vive.

Até ter certeza de que era câncer, qual era o tipo, qual estágio, agressividade e todos os elementos necessários para mapear a situação, eu fiquei num estado físico e emocional que até aquele momento eu não sabia nem que existia. Emagreci muito, não conseguia nem comer quase de tanta tristeza e nervosismo. Não dormia, não me olhava, mal penteava o cabelo, ia me arrastando de consulta em consulta, de exame em exame, absolutamente imersa no pavor do que poderia vir pela frente e, acima de tudo, do que poderia não vir pela frente. Chorava boa parte do tempo, e depois tentava disfarçar a cara para que meus filhos não se assustassem com a situação, não ficassem preocupados. Mas obviamente eles notaram que eu não estava nada bem.

Meu estado de nervos era tal, que saindo de um dos primeiros médicos com quem me consultei, estava como um zumbi diante do elevador, e a secretária dele veio me abordar. Ela disse assim, de uma forma muito afetuosa e gentil: “Desculpa, sei que pode parecer estranho, não quero ser invasiva. Mas te achei tão triste, tão triste… Queria saber se posso te dar um abraço.” Aceitei o abraço, claro, chorando por tudo que estava vivendo e pela emoção com o gesto dela, que jamais esquecerei.

Cada pequena coisa que eu fiz depois do diagnóstico teve um peso diferente para mim. Parecia que eu estava reaprendendo a viver e ser eu. Difícil explicar. Crise braba de identidade, angústia existencial, medo, tensão, insegurança, desamparo. Tudo que eu fazia de forma natural antes, parecia totalmente antinatural, esquisito. Situações corriqueiras, como escolher uma roupa, me arrumar, encontrar a família, ver amigos, fazer exercício físico, trabalhar, olhar a paisagem, ouvir uma música, assistir a uma série, ler um livro. Nada, nada, nada tinha o mesmo sentido de antes, eu estranhava tudo. Na verdade, estar com meus filhos parecia ser a única coisa absolutamente natural e era quando tudo se mantinha firme, com sentido e mais importante do que nunca. Claro que o medo interferia também, mas era estando com eles que eu me sentia eu.

Quando estamos nesse estado, um jantar com amigos, qualquer situação aparentemente banal, gera uma sensação de angústia. Estamos cercados de pessoas queridas, mas todos estão como sempre estiveram, e nós estamos despedaçados por dentro. O contraste com a naturalidade dos outros e com a memória do que éramos até dias antes dói. Aquele “eu” anterior parece não existir mais. Até hoje quando vejo fotos minhas antes do câncer me vem o pensamento: olha eu aí antes de tudo. Desavisada. Mal sabia eu o que estava por vir… Me sinto como sendo uma antes e uma depois do câncer.

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Muitas vezes quando olhamos de fora, não enxergamos o quão definitiva foi a ruptura emocional, a quebra psíquica (e física nesse caso também) de alguém que viveu alguma situação forte e traumática. É mesmo difícil medir isso de fora. Já vi pessoas viverem um câncer e passarem por transformações internas e externas radicais, e já vi pessoas que não pareceram se abalar tanto. Por alguma razão, a doença e todos os medos e estigmas que ela implica, não “apertaram o calo” delas. Tem gente que enfrenta bem um câncer, mas não uma demissão. Gente que enfrenta bem uma perda na família, mas não um “pé na bunda”. Tem de tudo.

Para mim, o câncer já tinha um peso anterior, porque perdi meu pai assim, e várias pessoas da família também. Não vi desfechos positivos em pessoas próximas. Até aquele momento, eu conhecia algumas histórias boas de gente do meu convívio, mas a maioria era de bastante sofrimento, dor e finais trágicos. Um ou outro “se safava”, conseguia um milagre.

Câncer era uma doença que nem o nome se falava direito na minha família. E ainda vejo frequentemente pessoas tentando evitar usar a palavra, buscando termos que pesem menos, que sejam menos estigmatizados. Essa esquiva mostra o medo e o tabu em torno da doença.

Tabu ou não, a realidade se impõe, e na vida talvez seja a doença de que mais tenhamos que falar (usando eufemismos ou não) e com a qual mais tenhamos que conviver, seja com a gente ou alguém próximo. Ao envelhecermos, o tema é inevitável, porque começam a virar rotina os exames preventivos de todo tipo e o receio de nos depararmos com um resultado ruim.

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Não apenas na vida, mas também na ficção, o câncer é a doença que mais aparece. Já notaram quantos personagens de livros, filmes, peças e séries descobrem um câncer, estão tratando um câncer, ou estão em luto por alguém que tinha câncer?

No entanto, em quantos filmes o personagem se recupera do câncer e segue a vida? Quando é mostrada a vida após o câncer? Uma vida com o fantasma da recidiva ou metástase (quando não com uma delas ou ambas se tornando reais), com revisões constantes, com paranoias totalmente justificáveis durante anos, cuidados especiais muitas vezes, com medicamentos pesados (cheios de efeitos colaterais), mudanças de estilo de vida, de hábitos, de prioridades, de perspectiva.

Mas também uma vida cheia de esperança, de gratidão, de amor, de diversão, de sexo, de trabalho, de boleto, de fila, de burocracia, de medos, de angústias, de alegrias, de descobertas, de solidão, de companheirismo, de aprendizados, de erros, de acertos, de perrengues, de música, de criatividade, viagens, problemas, conquistas, lutos, recomeços, separações, reencontros, paixões, amizades… Uma vida tão comum e também tão extraordinária como qualquer outra em muitos aspectos, mas diferente em outros.

Quando eu era mais nova eu pensava como seria o meu futuro, e jamais pensei que ele seria tantas coisas lindas e tantas coisas difíceis. Viver parecia tão simples. Não é.

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Mas hoje em dia, toda vez que estou me afundando em algum problema, me apego ao que pensei lá atrás, nessa época em que tive o diagnóstico. Quando estava no meio do “furacão”, ainda entre cirurgia e tratamento, eu pensava que, acontecesse o que acontecesse, eu me lembraria que, mesmo nos sofrimentos e dores, eu teria que agradecer, porque eles significam que estou viva.

Claro que sinto, e muito, cada obstáculo e dificuldade que passo. Me permito reclamar, sim, ter raiva, ter medo, frustração, ficar triste, revoltada, sentir o que quer que seja. Mas tenho sempre em mim, como pano de fundo, esse compromisso de lembrar que, se estou bem ou mal, seja como for, é porque estou aqui, vivendo.

Três anos… Quanto valem três anos de vida? Da sua vida? Da vida dos seus filhos, do tempo com eles? Com seus pais, seus irmãos, sua família, seus amigos? Quanto vale esse tempo para você? Quanto vale para eles três anos de vida a mais com você aqui? Eu hoje penso nisso constantemente.

O câncer assusta. Mas ele nos dá o “presente”. Confesso que, desde lá, não consigo fazer projeções de futuro, não consigo pensar em muita coisa que não seja para os próximos dias. Mas nunca vivi me sentindo tão conectada a tudo que vivo, no momento em que vivo. O preço disso é que me sinto extremamente desconfortável em situações que eu acho que estão sugando meu tempo, que eu vi o quanto é precioso. Fico angustiada.

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O tempo ficou mais concreto. Cada data, cada momento do dia a dia, eu enxergo de outra maneira. É uma sensação meio assustadora, uma convivência permanente com a finitude, mas que me deixa com meus pés no chão e valorizando coisas que antes eu nem notaria.

Cada troca de olhar com meus filhos, cada abraço, cada carinho, cada beijo, cada sorriso deles, cada choro, cada gol, cada conquista, cada aniversário, cada história contada, cada aprendizado, cada ensinamento, cada momento em que rezamos juntos, em que contamos piadas, damos risada, em que posso cuidar deles com febre ou seja lá o que for, em que posso ouvir um desabafo e acolher, em que posso consolar, animar, incentivar, testemunhar momentos inesquecíveis, cada momento em que eles mostram que estão crescendo, amadurecendo, construindo afetos, valores, caráter, ampliando os horizontes e sendo felizes. Cada momento desses eu sinto mais do que antes, estou mais alerta, mais presente, mais conectada do que antes.

Três anos a mais com minha família, quanto é isso? Quanta coisa já vivida. Muitas delas difíceis, o que me faz agradecer porque pude estar aqui, ajudar, participar. Muitos momentos alegres e amorosos também. Gente nova chegando na família, gente nova entrando para a família, alguns saindo…

E com os amigos, quantos momentos tão bons em três anos… Quanta troca, quantas conversas gostosas, quanto afeto, diversão, carinho, gargalhadas. Amizades, algumas, que eu há três anos nem sequer conhecia. Outras que conhecia pouco, e tive tempo de me aproximar. Que privilégio. Viver é um privilégio. Viver com saúde nem se fala…

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Desde que passei por tudo isso, vi o mar de pessoas que passaram por um câncer, ou vários até, e estão aqui, vivas, tendo momentos duros muitas vezes, mas muitos momentos alegres e felizes. Conheci um universo que não sabia que existia, vi uma história que não haviam me contado. É que ninguém fica anunciando e falando disso o tempo todo. Mas é um mar de gente. Mesmo. No entanto, o que chega de informação de forma geral são as perdas.

A verdade é que a maior parte das pessoas que passa por um câncer está por aqui. Certamente não saíram ilesos dessa experiência e suas vidas sofreram mudanças, algumas mais significativas, outras menos. Mas estão aqui. Estamos aqui. E precisamos poder ter mais espaços e mais oportunidades de poder falar abertamente, sem que isso seja um peso e um desconforto geral, sobre esse antes e depois. Sobre os desafios, aprendizados, perdas, ganhos e emoções dessa nova fase.

Todas as pessoas que se disponibilizaram a me escutar de verdade, se mostraram interessadas, empáticas solidárias com tudo que vivi, todas que tentam entender como isso ainda me impacta hoje, fazem toda a diferença para mim.

As pessoas, de forma geral, tendem a querer encerrar o assunto, tentam reduzir o tema a “mas agora você já tá bem? Curada, né? Página virada, certo?”. A essas pessoas, a resposta é não, esse assunto não se encerra por completo nem mesmo nos melhores cenários. Busquem estar mais atentos. Não é porque alguém sobreviveu a um câncer que não precisa mais de ajuda, de acolhimento, de alguém que compreenda suas dores e receios.

Que o Outubro Rosa seja uma oportunidade da ajudarmos na prevenção da doença, na informação sobre os tratamentos, mas que seja momento também de entendermos que o câncer em si pode até acabar depois da cirurgia e do tratamento, quando tudo sai bem. Mas vai ser sempre uma sombra. É uma incógnita, uma tensão para o resto da vida. Ele deixa marcas emocionais e físicas. Deixa também aprendizados e gera transformações, é verdade. Mas mesmo os mais resilientes, os mais fortes, corajosos e mais positivos, uma hora ou hora vão precisar de suporte. E assim como fez a secretária do médico que veio me oferecer um abraço solidário e sincero, seja você essa pessoa que enxerga a dor do outro e se dispõe a ir até ele para dar apoio, sem que ele precise pedir. Às vezes, nem ele próprio sabe que está precisando tanto assim.

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