Viviane Mosé estreia como dramaturga: “Sempre quis estar nesse lugar”
"O primeiro ensaio foi a adaptação do 'Assim falava Zaratustra', de Nietzsche, que fiz pro grupo Tá na Rua. E foi uma experiência incrível"

O poema é uma construção de palavras que busca acessar a poesia. Já a poesia resulta de um aguçamento dos sentidos que nos faz perceber as coisas mínimas, simples, aparentemente insignificantes ao nosso redor, e nos conecta a elas. A poesia é a manifestação da presença, dada por uma ocupação plena do instante, do agora, em um estado de contentamento e plenitude. O amor nos traz o estado de poesia, mas o amor pode nos deixar. A poesia não, ela é uma eterna companhia. Todas as artes acessam a poesia. E Duda Maia sabe bem disso, em seu belo trabalho que eu sempre admirei. Marilia Medina, uma amiga querida, teve a ideia do espetáculo “Desato”, correu atrás e fez a ponte. E que ponte feliz! Duda Rios ia fazer a dramaturgia, mas, por motivos profissionais, não pôde. Ofereci. Duda Maia concordou. Eu amo teatro, sempre quis estar nesse lugar, especialmente na dramaturgia. O primeiro ensaio foi a adaptação do “Assim falava Zaratustra”, de Nietzsche, que fiz pro grupo Tá na Rua. E foi uma experiência incrível, em que, além da dramaturgia, eu fazia o próprio Nietzsche usando um imenso bigode. O vírus do teatro havia me contaminado. Que honra!
Parti então pro trabalho. Primeiro, selecionei uma série enorme de poemas e mandei para Duda Maia em áudio. Ela selecionou os que mais gostava. Comecei colando os poemas de modo a construir um tipo de narrativa, o que não é muito fácil nesse caso. Resultou em um imenso poema que, aos poucos, foi ganhando corpo. Pensei em três mulheres e em como diriam aquilo tudo. Duda Maia conseguiu ver o que eu apenas esboçava e topou de cara o meu arranjo. As atrizes (Ana Carbatti, Ana Paula Novelino e Letícia Medella) embarcaram com tudo, engolindo aquelas palavras que, com maestria, foram se tornaram delas. Vieram o figurino, as músicas, o cenário, que foram compondo aquele abraço que as palavras vão dando umas nas outras, até acessar a presença sublime da poesia, que veio nos visitar com força.
Escrevo poemas porque, pelas palavras, algumas vezes posso acessar a poesia. Não me lembro de um tempo em que tenha vivido sem ela. Ainda antes de me alfabetizar, brincava com o som das palavras, fazia versos em minha cabeça, amava as pronúncias. E esta companhia, que seguiu comigo desde sempre, foi capaz de me acolher em meus momentos mais difíceis. E não foram poucos nestas seis décadas de vida. Sim, em meu nobre ofício de professora, nunca deixo de pensar em como posso compartilhar um aprendizado, neste caso, aprendizado de vida. Sim, eu gostaria de poder dividir este estado de sopro, este fluir bem devagar, este esboço de verso. Por isso, além de publicar, sempre falei (não gosto da palavra recitar) os meus poemas em público. Tenho quase todos de cor. Penso em como a linguagem nos consome, com suas rédeas curtas, suas regras gramaticais, seus limites, necessários, mas opressores. Escrevi sobre isso em meu doutoramento em Filosofia, no livro “Nietzsche e a Grande Política da Linguagem”, em como os valores morais, especialmente os que dizem respeito ao controle social, sempre voltado ao lucro, nos oprimem de modo muitas vezes invisível. E em como uma ampliação desse universo de valores pode nos fazer respirar novos ares, menos dependentes da indústria farmacêutica que, cada vez mais, se alimenta dessa dor.
E penso também em como a poesia pode derrubar provisoriamente esses limites e nos unir novamente à vida, esse transbordamento de forças que nos excede. Fortalecer os humanos para que possam lidar com suas dores inevitáveis é a tarefa, ao invés de produzir artifícios que nada mais fazem do que mascarar essa dor: constitutiva, inevitável dor de existir, de ter que lidar com as perdas que a vida nos impõe. A arte, a poesia presente nos poemas e em todas as artes, pode nos fortalecer, assim como a Filosofia. Quando aceitei a proposta da Marília Medina, de encenar os meus poemas, sabia que estava buscando um novo pacto com a vida, com a arte. Diferente da literatura, que se dedica a sofisticar a linguagem para que possa nos comover, o teatro coloca em cena a complexa ação de viver, por meio dos corpos dos atores, da música, do figurino, do cenário, da dança, dos olhos da direção que constroem um acontecimento único, uma magia que só existe ali, no teatro. Então que seja. Evoé, Baco.
Viviane Mosé é poetisa, capixaba que virou carioca desde 1992, psicanalista, mestre e doutora em Filosofia pela UFRJ. É discípula de Nietzsche – em sua tese de doutorado, publicou “Nietzsche e a grande política da linguagem”, em 2005. A partir da sexta (28/03), é também dramaturga, em “Desato”, com uma coleção de poesias sobre as dores e delícias da contemporaneidade. “É para se abandonarem pesos. Tirar e jogar fora, produzir leveza. Viver mais o agora e deixar de lado o passado e o futuro; afinal, viver é bom sem os excessos de explicação e medo que nos rodeiam”, diz ela. No palco, Ana Carbatti, Ana Paula Novellino e Letícia Medella, sob direção de Duda Maia, figurinos de Karen Brusttolin. Teatro Ipanema Rubens Corrêa (Rua Prudente de Moraes 824), até 13 de abril.