Sérgio Besserman (presidente do JB): “Só não pode parar”
"Minha sorte foi uma paixão: os livros se apaixonaram por mim. Mais tarde, eu me apaixonei por eles"

Minha sorte foi uma paixão: os livros se apaixonaram por mim. Mais tarde, eu me apaixonei por eles. Tudo começa séculos, milênios atrás, quando tive a bênção de muitos rios desencontrados desembocarem no pantanal da minha cabeça.
Por um lado, uma ancestralidade judaica na qual minha família materna, desde muito lá atrás, optou pela jangada dos livros. Judeus não são diferentes de ninguém, mas a jangada dos livros está sempre disponível, para embarcar, ou não. A Torá, os cinco primeiros livros do Pentateuco no Antigo Testamento na Bíblia cristã, é o livro sagrado. Mas sagrado também é o Talmude, composto de livros que debatem a Torá.
E não há autoridade: cada um lê, discute, ouve, aprende, segue um rabino, segue outro, consulta a AI, ou tem seu próprio pensamento. Mas começa lendo. Meu avô, instrução formal zero, migrante para o Brasil antes de Hitler, vivia me provocando (é do Talmude): “O que é que pode morrer antes mesmo de nascer? Um livro que nunca foi lido.“
Assim foi por inúmeras gerações, até que minha mãe casa com um capixaba, e os dois educaram seus filhos assim: “Faz ou não faz o que bem quiser e assuma as responsabilidades. Menos ler. Tem que ler. Todo o tempo. “Mas ler o que mãe (ou pai)? “O que quiser, o que gostar, o que te provoca, te faz desejar, pensar ou se distrair. Só não pode parar.“
Meu pai não era judeu. Os Orixás conspiraram, e a família capixaba, de ancestralidade principalmente portuguesa, mas também indígena, negra e, até, uma húngara trapezista de um circo que passou por Cachoeiro de Itapemirim (vira-latas caramelos-raiz) também navegava a vida nessa jangada.
Quando tive de passar no exame de admissão do Colégio de Aplicação (vai dizer pra uma idish mama que não passou pra ver o que é bom), o primeiro semestre de estudos foi no quartinho que era a biblioteca dos meus avós (um dois-quartos no bairro Peixoto). Com o incentivo de meu avô Ari, não estudei nada, mas li Tolstoi, Dostoievski, Simenon, Jorge Amado e Graciliano Ramos de montão. Minha mãe descobriu, e o segundo semestre foi sob controle (e bota eufemismo nisso).
Entrei no Colégio de Aplicação da UFRJ. Minha mãe Oxum e meu pai Oxóssi deram mais um ponto no tricô: em plena ditadura militar, o objetivo educacional do colégio (eterna gratidão pelo ensino e pelos amigos e amigas) era: “Desenvolver o espírito crítico da galera “. E como é que se faz isso? Que me perdoem (não me cancelem, não me cancele, por favor) os letramentos atuais e os adictos das redes sociais, mas só tem um jeito: é lendo.
E assim, escalava estantes como um bom macaquinho-prego e escolhia. Excentricidade, lá em casa, nunca foi problema: uma boa banheira quentinha, uma tv passando “A feiticeira”, um prato de frutas em um banquinho. Desse modo, foram, por exemplo, todas as peças de Sartre (Uau! Vou reler “Os dados estão lançados”, por conta dessa lembrança).
E os sábados à noite? Na casa de meus pais, reuniam-se tantas mentes do Brasil que não posso citar sem injustiças imperdoáveis. E praticavam um ritual ancestral (hoje perdido ou proibido, não sei): conversar, debater pra valer, longamente, com diagnóstico e contexto, os mais diversos assuntos. E eu, desde pequenininho, sentava de lado e ouvia; já adolescente, às vezes falava. Nesse caso, era invariável o questionamento: já leu isso? Já leu aquilo?
Depois veio a PUC, onde sábios jesuítas sacaram a minha e impulsionaram a paixão. E o departamento de Economia com Marcelo Abreu, Winston, Edmar Bacha, Pedro Malan, Dionísio Dias Carneiro, André Lara, Pérsio Arida e muitos outros com o mesmo calibre (desculpem a falta de espaço, mestres) e eu, estudante meio lelé, fazendo cursos por toda a universidade (Geografia, História, Filosofia etc.), à galega do desejo ou do professor da disciplina. As aulas? Muito legais, mas secundárias. Esses mestres, àquela época, nem conversavam direito com quem não tinha lido tudo que era para ler.
E, com a bênção dos Orixás de minha cabeça, meu Tranca Rua (das almas), deu o ponto final no tricô da paixão: meu ativismo contra a ditadura militar me levou a um encontro maravilhoso. Fui adotado por Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Armenio Guedes e outros. E isso também significava: já leu isso? Já leu aquilo?
Apaixonei-me, casei e vivi feliz. Na verdade, costumo dizer que ler é viver outra(s) vida(s). E quando a inevitável chegar, como bom carioca, vou zoar: chegou tarde, minha filha, já vivi tantas vidas…
Sérgio Besserman Vianna é economista e ecologista. Desde a Rio92, dedica-se ao estudo das mudanças do clima. Entrou para o BNDES em primeiro lugar, no Prêmio BNDES, com a dissertação (e livro) “A política econômica no segundo o Governo Vargas”. Lá fez carreira (de técnico a diretor), foi presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos e, atualmente, é presidente do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico. Irmão mais velho do Bussunda (do Casseta&Planeta), liderou quase todos os demais “Cassetas” no movimento estudantil contra a ditadura militar e viraram amigos para sempre. Ganhou o prêmio “Economista do Rio” na edição de 20 anos da Veja Rio.