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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Rafael Dragaud (roteirista): uma conversa fictícia entre Virgínia e Mujica

Nos noticiários, de um lado, a morte de Pepe Mujica, do outro Virginia Fonseca na CPI das Bets: uma daquelas ironias que só o Brasil é capaz de produzir

Por lu.lacerda
Atualizado em 14 Maio 2025, 18h58 - Publicado em 14 Maio 2025, 18h30
Imagem de Virgínia Fonseca na CPI das Bets; ilustração de Pepe Mujica, criada por Nando Motta
Imagem de Virgínia Fonseca na CPI das Bets; ilustração de Pepe Mujica, criada por Nando Motta  (Reprodução/Internet)
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Mujica e a dançarina digital

O noticiário de ontem provocou em mim um delírio febril: de um lado, manchetes sobre a morte de Pepe Mujica (esse uruguaio que nos fez acreditar que política pode ser feita sem harmonização facial e jatinho); de outro, a participação desconcertante de Virginia Fonseca na CPI das Bets. As duas notícias ocuparam espaço desproporcional nos jornais, numa daquelas ironias que só o Brasil é capaz de produzir.

Foi essa justaposição absurda que fez minha mente, já comprometida por décadas de observação da estupidez humana, fabricar o encontro que relato a seguir. Um encontro que, matematicamente falando, tem a mesma probabilidade de ocorrer que a de um político brasileiro devolver dinheiro roubado: ZERO.

Pois bem, José “Pepe” Mujica, aquele uruguaio que presidiu seu país vivendo numa chácara modesta com um fusquinha de 1987 e uma cadela de três patas chamada Manuela, sentou-se à mesa de um boteco qualquer (desses que não têm sommelier de água) com Virginia Fonseca, a influenciadora que tem mais patrocínios que neurônios e que ontem explicou na CPI das Bets que “não tem nada a ver com isso”, enquanto postava stories promovendo apostas com o código “GANHEFACIL500K”.

— Então, señorita — começou Mujica, servindo-se de mate em uma cuia gasta pelo tempo — a senhorita ganha milhões para dizer às pessoas que elas também podem ganhar milhões?

Virginia, desconfortável por estar em um ambiente sem ring light, respondeu ajeitando o cabelo perfeitamente alisado:

— É tudo bênção de Deus, sabe? Eu oro muito! Vem cá, você não quer aprender uma dancinha? Ela tá bombando! Olha só: “Deus abençoa, a bet multiplica, meu bolso agradece” — cantarolou enquanto executava movimentos indecisos (será mesmo?) entre o erótico e o infantilóide.

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Mujica observou com a mesma expressão com que observara os 12 anos de cativeiro durante a ditadura uruguaia. Depois, com a paciência de quem plantou mais árvores que a maioria dos humanos cortou, disse:

— Sabe, jovem, a vida é como uma bicicleta. Não precisamos de um Lamborghini para chegar ao mercado. A felicidade não está no excesso, está na simplicidade.

Virginia, verificando freneticamente o número de visualizações em seu último post, retrucou:

— Mas como você vai fazer publi de bicicleta? Dá nem 500 reais! Olha, se você deixar essa barba mais estilosa e trocar esse casaco velho por algo mais hypado, posso te conseguir um código de desconto numa clínica de estética! #MUJICADESCONTO15!

O ex-presidente acariciou seu bigodinho elegantemente anacrônico, tomou um gole de mate e sorriu como quem acabou de entender o sentido da existência:

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— A senhorita é como um algoritmo, não? Transforma pessoas em números. Eu prefiro transformar números em pessoas.

Virginia, confusa com a frase que não lhe servia como uma legenda de Instagram, decidiu ser direta:

— Pepe, você não entende. Eu faço as pessoas sonharem! Pensa só: elas podem ganhar MUITO dinheiro!

— E quantas ganham? — perguntou Mujica.

— Ah, isso não sei. Mas eu ganho! — respondeu com a sinceridade de quem nunca precisou refletir sobre as consequências das próprias ações.

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Mujica assentiu com a cabeça, como quem finalmente compreende o diagnóstico de uma doença terminal:

— Sabe, jovem, Hannah Arendt falava sobre a banalidade do mal. Não é necessário ser monstruoso para fazer coisas monstruosas. Às vezes, basta seguir a corrente sem pensar.

Virginia iluminou-se como uma lâmpada de 500 watts:

— Hannah Montana?! Adoro! Fiz uma dancinha com “The Best of Both Worlds” que bombou no TikTok! Olha só! — E começou a rebolar enquanto cantarolava desafinadamente. — Sabe que a Miley é minha inspiração? Ela também começou fazendo conteúdo infantil e hoje cobra uma fortuna por post!

— Não, señorita. Hannah A-RENDT. Filósofa. Escreveu sobre totalitarismo e…

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— Ah! — interrompeu Virginia, já digitando no celular — Essa aí não conheço. Ela tem Instagram?

Nesse momento, Mujica fez algo inusitado: pegou o celular de Virginia e começou a gravar um vídeo.

— Olá, seguidores da señorita Virginia. Sou José Mujica. Quero dizer-lhes que a verdadeira aposta é na vida. O tempo é o único recurso que não podemos recuperar. Quando os senhores apostam dinheiro, estão na verdade apostando tempo de suas vidas. E isso, meus amigos, nenhuma bet multiplica.

Virginia arrancou o celular da mão do ex-presidente como quem resgata uma criança do incêndio:

— Não posso postar isso! Vou perder contratos! Além do mais, você nem usou as hashtags!

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Mujica deu de ombros, terminou seu mate e levantou-se para ir embora:

— Senhorita, reze menos para Deus te abençoar e reflita mais se suas ações abençoam os outros.

Ao sair, deixou sobre a mesa uma pequena flor que havia colhido no caminho. Virginia, sozinha, olhou a flor por alguns segundos antes de pegá-la. Pensou em fazer uma foto para o Instagram, mas algo a impediu.

Não, ela não teve uma epifania moral. Simplesmente percebeu que a flor não combinava com a estética de seu feed.

E assim termina minha crônica impossível. Em algum lugar do universo, Mujica volta para sua chácara para plantar mais uma árvore, enquanto Virginia posta um stories promovendo um novo site de apostas com o código “DEUSQUERDINHEIRO”.

O mais triste, não é constatar que o dinheiro move o mundo. É constatar que movemos o mundo em direção ao dinheiro.

Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.

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