Próprio Punho, por Paula Boechat:”Minha vida antes e depois da meningite”
"Fiquei surda, e ouvir o 'zumbido de mar' só pode ser uma bênção"

Era um dia de semana. Achei que estava de ressaca, com muita dor de cabeça e dor nas costas, vomitando, aquela situação… Quase à noite, minha mãe foi me buscar em casa com o motorista, e me levaram ao hospital. Exames de sangue ótimos, me mandaram pra casa; me lembro de não entender como, mas fui.
No dia seguinte, continuei a passar mal; desta vez, não falei pra ninguém. só com uma amiga psicóloga, cujo pai era um grande médico e falava sempre com ela que me achou muito esquisita, já perdendo a audição; daí ela insistiu em me levar ao hospital, onde já tinha ido. Eu não queria, mas ela foi me buscar com uma amiga médica em comum. Me levaram pra Copacabana, onde já fizeram punção, e dei entrada na emergência, com meningite bacteriana.
O mais louco é que eu era conhecida em casa como a “louca da saúde”. Sempre me cuidei muito e havia verbalizado, uma semana antes, que pensava estar na melhor forma da minha vida. Sempre tive uma vida abastada de família e amigos, pude escolher ser artista (com incentivo dos meus pais), uma vida quase perfeita, com muitas oportunidades, que foram bem aproveitadas. Muito nova, estudei arte e inglês na Califórnia, fiz sucesso como artista nos EUA e Paris, onde também morei por três anos. Me aventurei na hotelaria quando estive casada com o pai dos meus filhos (maiores motivos para não desistir), construí pousadas em Fernando de Noronha, enfim, tive uma vida privilegiada e cercada de amor.
Fui internada no dia seguinte, e me colocaram em coma induzido. Não me lembro de nada. Infelizmente acordei surda, mas pensando que era bom estar viva. Meu pai não saiu do meu lado, meus irmãos e amigos, todos numa corrente.
Um mês depois, já operada pelo médico Felippe Felix (otorrino referência em surdez, implante coclear e cirurgias de ouvido e nariz), implantada, esperando ativar os implantes na esperança de escutar novamente. Foi em vão. Dois anos se passaram, e ainda não escuto nada externo, apesar da reabilitação auditiva e motora, que tem sido de grande sucesso.
Logo no começo, comecei a ouvir o mar dentro da minha cabeça, um som de ondas arrebentando… Descobri que isso é muito comum nas pessoas com problemas auditivos (o tal do zumbido), mas uma amiga em SP escuta aspirador de pó…
Por isso, penso que “zumbido de mar” só pode ser uma bênção e, com certeza, é material onírico para o meu trabalho. Chamo de “mares de dentro” as novas séries de pinturas e, como todos os meus sentidos estão realmente aguçados, tenho sentido tudo, muito com profundidade. A instalação/pintura/penetrável veio dessa necessidade de transbordar, assim como o mar na minha cabeça. São trabalhos de memórias auditivas dos meus “tempos ouvintes’”, que, na pintura, estão presentes com muita força em tom vermelho, como se estivesse misturado ao sangue. Esse vermelho magenta, misturado ao azul do oceano, tem gerado violetas intensos que permeiam essas camadas sensoriais e profundas.
Quero tentar trazer essa sensação; meu ateliê virou um oceano pictórico. As referências são trazidas por pintura, natureza morta, misticismo (onde Iemanjá está presente e homenageada) e som, sim, o som do mar, “partout” (em todos os lugares), como no meu cérebro.
As pinturas estarão dentro, como esse mar, no meu cérebro. E sei que nasci para pintar! Helio Oiticica está dignamente homenageado no nome “penetrável”, pois ele era o mestre da pintura imersiva. Quero dar sentido a isso e ao que estou vivendo através da arte. Muitas vezes, desejei ter ido com a meningite. Sim, pensei em partir por conta própria, porém estar aqui e poder realizar uma pintura sensorial no meu espaço é uma grande oportunidade que só aconteceu porque quase morri e fiquei surda.
Ou seja, encontrei forças onde não sabia que existia. Para transformar minha dor, amigos e família, com certeza, são os responsáveis por eu estar aqui fazendo tudo isso e, claro, meu mar interno. E certamente vai valer a pena. A arte salva, o amor constrói.
Paula Boechat é artista plástica. A partir deste sábado (02/08), está em cartaz com “Mar de Dentro”, no Estúdio Ipê (Rua Raul Pitanga, 39, Itanhangá), com texto de Luana Aguiar e produção artística de Walter Rosa. Visitação, só com hora marcada pelo instagram @paulaboechat_studio. Paula estudou desenho e pintura na Universidade da Califórnia em 1996; frequentou a Escola de Artes Visuais; em 2000 se formou em Desenho Industrial; em 2002, frequentou a Escola de Belas Artes em Paris, onde morou. Ganhou o “Prêmio Rio Jovem Artista” da RIOARTE em 2000. Na mesma época, conheceu Gabriela Moraes, com quem formou a dupla PaulaGabriela, com exposições no Brasil e no exterior.