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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Maria Francisca Mauro: bebês Reborns, sua cegonha e a realidade

Não há roda de conversa que fuja ao hiper-realismo dos bebês reborns, aqueles que parecem ser uma criança iniciando a vida

Por lu.lacerda
17 Maio 2025, 07h00
Maria Francisca Mauro
 (./Divulgação)
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Não há roda de conversa que fuja ao hiper-realismo dos bebês reborns, aqueles que parecem ser uma criança iniciando a vida. Nos debates, há muito humor e críticas ácidas quanto aos personagens envolvidos nesse “contexto lúdico”. Haveria como mulheres acima de 30 anos estarem brincando de boneca? O que está por trás desse fenômeno viral das redes, seus memes, ataques e indignação coletiva?

Na defesa sociológica do fenômeno, muitos já ressaltaram que o colecionismo e a dedicação aos hobbies masculinos não provocam essa onda de ódio — os marmanjos estão autorizados a jogar videogame, colecionar o que for, além de cultuarem fanatismo por seus times de futebol. Assim seria o comportamento feminino lúdico alvo de um viés seletivo cultural machista, fruto do patriarcado e suas garras de controle. Alguns torcem o nariz para essa opção, mas a acolhem com moderação. Dessa forma, mantém-se o politicamente correto com contorcionismo de crítica na próxima frase.

Em debates mais humorísticos, já se tem até mesmo uma cadeia de serviço e modelos de negócio para atender os bebês reborns, com suas necessidades mais íntimas: desde clínica de vacinação, creche e viagens, ou mesmo terapia para que possam suportar sua marginalização e terem seu cuidado de saúde mental em dia. Nada fácil ter haters, sofrer bullying digital e ainda se manter ileso. Não há hiper-realismo que tolere se transformar num fenômeno da Internet. Com parto viral, briga na Justiça por guarda compartilhada, depoimentos utilizados como chacota, o prato está cheio para alguns dias de trend.

Seria um devaneio com fuga da realidade? Os psiquiatras precisam agir, medicando essas mulheres e enquadrando-as num diagnóstico. Haveria um prejuízo de funcionalidade para exercer suas atividades de rotina? Em outro sentido, há uma certa compaixão ambivalente para quem está utilizando sua bebê reborn para o luto perinatal, quadros demenciais e como objeto de suporte terapêutico — uma ferramenta terapêutica útil para enfrentar um trauma, ou apenas estamos diante de reforçar um sintoma? Diante do sofrimento emocional de alguém, sempre é necessário ter cautela e respeito.

Nos relatos das mamães reborns, emerge o questionamento quanto ao seu hobby: querem apenas brincar e cuidar dos seus pequenos, em paz; um colecionismo que as conforta emocionalmente, proporcionando uma presença de afeto e acalma. Já em outros depoimentos, a impossibilidade de ter filhos ou estes já estarem maiores fazem com que busquem um refúgio no cuidado dos seus bonecos. No tumulto do mundo atual, ali na situação controlada de uma fantasia, o exercício da maternidade se transforma numa performance de cuidado. Com o cenário controlado, sem choro, nem fralda suja, na serenidade da troca de fralda imaginária, há um controle da demanda — sem surpresas nem frustrações. Na economia do afeto, o simbólico ganha berço e enxoval, o que pode parecer uma negação das necessidades de uma vida adulta.

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Apresentar a realidade nua e crua não é da mesma forma para todos. Na clínica psiquiátrica, para algumas pessoas, a ruptura com a realidade pode ser concreta e para outros, uma metáfora. Quando concreta, precisamos estar dispostos a fazer uma ponte de conexão com a realidade, aos poucos e suavemente. Nos que estão rompidos com a realidade, como um esconderijo de si, mas cientes desses contornos de ilusão, sem bater o pé na porta, apresentamos o caminho dos fatos. Apenas não podemos fazer parceria com os devaneios e alimentar a falta de noção que ronda os tempos atuais. Muito sutilmente, entre o delírio ou uma dissociação da realidade, cumpre cuidar de quem não está com seu juízo a favor de si.

Aí, nos tempos atuais, é que está o grande palco para essa comoção coletiva com as reborns. As pessoas, muito cansadas da “doidera” que sobrevoa a cena social, querem gritar que não suportam mais flertar com algumas encenações. Há uma saturação dos fenômenos digitais, uma busca por “raiz” e coerência, em detrimento de se defender da coletividade entorpecida. Bem no íntimo, as pobres bonecas, suas mães e familiares estão apenas servindo como pretexto para discussão desse cansaço. As reborns humanizadas são filhas legítimas do mal-estar que ronda nossas rotinas. Encarnam a precarização das relações, os afetos esvaziados e riem das problemáticas das crianças de carne e osso. Não muito mais que isso.

Maria Francisca Mauro, psiquiatra, mestre e doutora em Psiquiatria pela UFRJ, atua na clínica particular e com palestras corporativas.

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