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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Jornalista comenta veto de Paes ao “Dia da Cegonha Reborn”

André Fernandes é criador da Agência de Notícias das Favelas e acaba de criar a campanha  #AdoteUmaCriançaNãoReborn

Por lu.lacerda
Atualizado em 2 jun 2025, 19h31 - Publicado em 2 jun 2025, 19h00
Eduardo Paes veta projeto de lei que criava o "Dia da Cegonha Reborn"
Eduardo Paes veta projeto de lei que criava o "Dia da Cegonha Reborn" (./Internet)
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O prefeito Eduardo Paes demonstrou um espírito de lucidez ao vetar, nesta segunda (02/06), integralmente, o projeto de lei que criava o “Dia da Cegonha Reborn” no calendário oficial da cidade. É um gesto simbólico e necessário diante de um país que precisa urgentemente priorizar crianças reais em vez de fantasias de plástico. O veto foi mais do que um ato político: foi um posicionamento ético.

Enquanto bonecas ganham berço, mais de 4 mil crianças e adolescentes vivem hoje em abrigos no Brasil, à espera de uma família. São meninos e meninas reais, com nome, história, sonhos e traumas, muitas vezes invisíveis para uma sociedade que prefere o conforto da fantasia. Ao mesmo tempo, o mercado dos bonecos reborn, que simulam bebês com aparência hiper-realista, cresce nas redes sociais, nas vitrines e nos braços de adultos que se emocionam ao “adotar” um bebê de silicone.

Até por isso, lançamos a hashtag #AdoteUmaCriançaNãoReborn (pela Agência de Notícias das Favelas), que é mais do que uma provocação. É um chamado à responsabilidade afetiva. Por que tantas pessoas investem milhares de reais em um boneco enquanto tantas crianças reais seguem sem um lar?

Nas favelas brasileiras, a realidade da infância é ainda mais invisibilizada. Milhares de crianças crescem em meio à negligência do Estado, à ausência de políticas públicas efetivas e à seletividade do afeto. Muitas são separadas de suas famílias por contextos de pobreza extrema, não por falta de amor. Outras seguem institucionalizadas por anos, à espera de uma chance que quase nunca chega.

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Há histórias que tocam de maneira definitiva. Uma delas é a de uma menina que perdeu os pais aos 3 anos e passou os sete anos seguintes em um abrigo, aguardando por uma família — sete anos, uma infância inteira esperando ser escolhida! Hoje, é uma mulher admirável, que constrói com sensibilidade, inteligência e firmeza. Seu percurso inspira, mas, em sua trajetória, permanece a marca de uma espera que jamais deveria ter sido tão longa.

Essa não é uma história isolada. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, mais de 65% das crianças aptas à adoção no Brasil são negras ou pardas e têm mais de 7 anos, mas apenas 9% dos pretendentes aceitam adotar crianças com esse perfil. O abismo entre o desejo idealizado e a realidade concreta escancara um país que ainda não aprendeu a amar o que é real.

O debate sobre as reborn não é só sobre classe: é sobre raça, é sobre gênero, é sobre quem tem o direito de performar cuidados sem ser interrompido pela realidade. Nas periferias, as mulheres negras não são “cuidadoras” por hobby — são sobreviventes. São elas que sustentam famílias inteiras, muitas vezes sem ajuda de parceiros ou do Estado. São elas que, mesmo cansadas, assumem crianças abandonadas nas vielas, tornando-se mães de guerra.

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Enquanto isso, o mercado das reborn — majoritariamente branco e de classe média — vende a ideia de que “todo mundo merece um afeto para cuidar”. Mas a quem esse “todo mundo” se refere? Quantas dessas bonecas são presenteadas a empregadas domésticas? Quantas são compradas por mães que trabalham 12 horas por dia?

Uma boneca reborn é um objeto que reflete o abismo social entre quem pode ter uma boneca de R$ 5 mil e quem nem sequer tem R$ 100 para o gás. As reborns não são “apenas bonecas”. São sintomas de uma sociedade que monetiza até o afeto, enquanto nega condições básicas para que mães negras e periféricas exerçam sua maternidade com dignidade. Não estamos aqui para julgar quem compra essas bonecas, mas para denunciar um sistema que permite que o luxo de alguns seja construído sobre a privação de muitos.

Adotar é um ato de coragem, de compromisso, de entrega. Não se trata de preencher um vazio com um boneco que chora e se movimenta mecanicamente, mas de acolher uma vida com passado, com sentimentos e com futuro.

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É hora de mudar o imaginário. Adotar é amar a verdade, amar o que não se compra, amar quem precisa de nós.

André Fernandes é criador da Agência de Notícias das Favelas, fundada em 2001, hoje com mais de 400 colaboradores entre moradores de favelas ou não, responsável pelo jornal “A Voz da Favela”, com 100 mil exemplares por edição. Criou a campanha  #AdoteUmaCriançaNãoReborn como provocação, segundo ele, “enquanto bonecos ganham berço, crianças reais seguem sem lar”.

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