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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Helio Saboya: “É mais fácil ouvir latim num tribunal que numa igreja”

Advogado falar sobre o uso em excesso do “juridiquês”, a mistura de palavreado técnico com estilo rebuscado

Por lu.lacerda
Atualizado em 6 abr 2025, 12h39 - Publicado em 6 abr 2025, 07h10
Helio Saboya advogado
 (Reprodução/Arquivo pessoal)
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Se o português é a língua do Brasil, a da Justiça é o “juridiquês” – uma mistura de palavreado técnico com estilo rebuscado em doses gigantescas de expressões em latim, obsoletos ao extremo.

Ninguém aguenta ouvir ou ler termos como exordial increpatória (denúncia) ou peça incoativa (petição inicial) e ainda “V. Exa., data máxima vênia” (usada no início de uma argumentação para discordar da opinião de alguém, expressão latina que significa “com o máximo respeito”)… Pra que a prolixidade em pleno 2025?

Desde que assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso tem levantado a bandeira da “linguagem simples”, não por tendência, mas por necessidade, para garantir o acesso à Justiça.

E que fique claro: o Pacto Nacional pela Linguagem Simples, lançado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso (STF), o objetivo é que as decisões judiciais e a comunicação com a sociedade sejam claras e compreensíveis a todos para simplificar a linguagem jurídica, mas não eliminar o intelectualismo.

Como já provado, escrever de forma simples é uma habilidade intelectual, que nem todos conquistam, como demonstrado por Machado de Assis, Jorge Amado, Graciliano e outros nomes da Literatura.

O portal “Migalhas”, especializado em artigos jurídicos, fez uma pesquisa para saber quais expressões deveriam ser banidas, no que chamou de “Dicionário de Péssimas Expressões”. Entre os termos, está o “análise perfunctória”, que pode ser substituído por “avaliação superficial”, ou ainda “olhada rápida”; ou projeto e rascunho em vez de “bosquejo”; e “cediça sabença”, que parece um insulto, mas nada mais é do que “de conhecimento público”; “ergástulo público” em vez de cadeia; e no lugar de “consorte supérstite”, simplesmente viúvo, e assim vai.

Uma vez na vida, quase todas as pessoas precisam ler algo do tipo ou dos serviços de Direito, ler processos, documentos de cartórios e afins. Hoje, com a tecnologia, existem as transmissões de seções importantes à população, como as CPIs, e, do nada, estão lá as expressões, desanimando qualquer um a continuar.

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Conversamos com o advogado Helinho Saboya, com mais de 30 anos de experiência nas mais diversas áreas do Direito, especialmente empresarial, cível e família, com atuação nos Tribunais Superiores (STJ e STF), bem como em consultoria em direito imobiliário, contratos, direito público e arbitragem. Saboya já provou ser dono de incrível senso de humor.

1 – Pelo menos, há uns 20 anos, existe uma polêmica sobre o uso do juridiquês como instrumento de exclusão. Como você enxerga a insistência no uso de termos inacessíveis para a maioria das pessoas?

Essa insistência decorre do fato de ainda sermos – e agora mais do que nunca – o País dos Bacharéis, com 1.240 faculdades de Direito (o resto do planeta tem cerca de mil). O juridiquês assola o Brasil há muito tempo. No delicioso conto “A Teoria do Medalhão”, de 1881, Machado de Assis relata a seguinte lição de um pai ao filho de 21 anos: “Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou de agradecimento”. Os termos rebuscados e herméticos usados em tribunais e casas legislativas já serviam como um rito de aceitação nos salões das elites brasileiras. Até hoje inacessível à maioria, o juridiquês tornou-se uma patologia linguística e, ao mesmo tempo, uma espécie de reserva de mercado da advocacia, uma das classes mais corporativistas que há.

2 – Acredito que seja sofrível mais para a pessoa que ouve porque, por vergonha, a maioria finge que entende, deixando passar algo importante numa cláusula, processo ou seja lá o que for. Já viu casos do tipo?

Já vi. O acanhamento é muito perigoso nessas situações e pode ser determinante para um desastre processual ou um fracasso negocial. Diante de um texto enigmático, o advogado deve ter a humildade de procurar decifrá-lo antes de se posicionar. Vai à biblioteca, consulta um colega ou entra no Google.

3 – Só em 2023, foi lançado o Pacto Nacional pela linguagem simples, para tornar comunicações judiciais acessíveis, incluindo libras, até pelo maior incentivador do estilo, o ministro Luís Roberto Barroso. Qual a maior dificuldade de aplicar isso no cotidiano?

Já está acontecendo. A iniciativa do ministro Barroso se volta justamente àqueles que, leigos ou não, acessem peças processuais. Mesmo as mais intraduzíveis passarão a sê-lo por força das ferramentas de Inteligência Artificial, o que, contudo, não assegura que deixarão de ser uma leitura chata. Aí vai depender do talento do redator e do gosto do leitor.

4 – Acredita que é preciso parar de achar que quem fala complicado é inteligente, porque geralmente quem fala complicado não sabe do que está falando? Tem exemplos?

Há muitos exemplos, inclusive fora da minha área. O pior é que funciona. É só ver a horda de coaches e mentores salpicando suas palestras com citações eruditas, anglicismos e neologismos para ganhar seguidores (e milhões). Inevitável lembrar o personagem de Lima Barreto que, depois de aprender meia dúzia de expressões em javanês, por exemplo, “Como vai o senhor?”, caiu nas graças de um barão e de um desembargador e acabou representando o Brasil em um Congresso Internacional de Linguística (“O homem que sabia javanês”, 1911).

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5 – Cite casos de má interpretação ou uso de terminologias esquisitas, como “ergástulo público”, “consorte supérstite”, “cártula chéquica”, “aforamento”, “embargos infringentes”, “mútuo feneratício”, que até Barroso brincou com alunos da PUC, dizendo parecer uma posição do Kama Sutra. Rsrsrsrs!

Tenho uma ótima. Em uma simples ação de despejo, um ilustre causídico mandou o seguinte: “Conforme essa exordial, além de o habitador deixar de prodigalizar pontualmente as mercês inquilinárias, desonrou os encargos apendiculares.” Tradução: o inquilino não pagou o aluguel e o condomínio.

6 – Existe a linguagem coloquial e a culta, mas o juridiquês não parece estar inserido na culta, e sim como uma maneira de exclusão porque, às vezes, nem o advogado sabe o que está dizendo e só repete o que aprendeu. Acredita que tenha de existir uma mudança no ensino, uma vez que o latim, muitas vezes ainda ensinado e usado, está em desuso?

O latim só é ensinado como matéria eletiva em Letras e Literatura Clássica. Algumas poucas expressões até caíram no gosto do povo: “carpe diem”, “data venia”, “status quo”. Nas missas, sobrevive um “in nomine Domini”, porém é mais fácil ouvir latim em um tribunal do que em uma igreja.

7 – Citando ainda Barroso, ele diz que para tudo existe um limite na vida, e um ditado em latim “Dormientibus non succurrit jus”, que significa o “Direito não socorre aos que dormem” é muito importante, mas que a linguagem simples também não é partir para o excesso de informalidade, ou seja, não traduzir “Dormientibus non succurrit jus” como o carioquês “Camarão que dorme a onda leva”. É possível chegar a um denominador comum?

Os termos técnicos e jargões em outros idiomas naturalmente variam, mas são plenamente aceitáveis se utilizados com comedimento. Simplificá-los ou traduzi-los livremente é um meio de popularizá-los. O grau de informalidade fica a gosto do freguês. O Código de Processo Civil só proíbe mesmo o uso de expressões ofensivas e injuriosas (Art.15). Em juridiquês, “camarão que dorme a onda leva” é  “squilla qui dormit fluctus capit”, mas não acho que seus compositores (Zeca Pagodinho, Beto Sem Braço e Arlindo Cruz) aprovariam a tradução.

8 – Pra você, existe alguma associação entre os textos jurídicos com termos rebuscados em excesso e o atraso da Justiça no país?

Rebuscado ou não, o texto é hoje decifrável com a ajuda da Internet. O que mais atrapalha, especialmente nos julgamentos de grande repercussão, é a irresistível vontade dos ministros em aparecer durante as sessões televisionadas. Se os advogados têm 15 minutos, Suas Excelências têm tempo livre para deitar falação. E, muitas vezes, ao invés de simplesmente declararem “acompanho o relator” ou “sigo a divergência”, passam horas repetindo, com outras palavras, exatamente os mesmos fundamentos dos votos a que aderiram. Sem luzes, câmera, ação (sou dessa época), não havia essa disputa por protagonismo, e eu não perdia os voos de volta de Brasília.

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9 – Nesse sentido, a Inteligência Artificial ajuda ou atrapalha? Porque, por exemplo, é só colocar um processo inteiro para o ChatGPT “traduzir”, que ele dá os tópicos principais. E no cotidiano dos advogados, a tecnologia ajuda como?

Eu, particularmente, não uso (nem sequer sei acessar) o ChatGPT; aliás, nem sei assinar digitalmente minhas petições. Faço pesquisas de doutrina e jurisprudência como se estivesse numa biblioteca e redijo petições e contratos como se estivesse diante da minha velha Olivetti Práxis (com corretor). Não sou contra a Inteligência Artificial, mas resisto a delegar a algoritmos a elaboração dos meus trabalhos. Quanto à aplicação em decisões judiciais, creio que há um grande risco de pasteurização tóxica, que abstrairá as peculiaridades presentes em cada caso concreto, em nome de uma uniformização dos alhos com os bugalhos. Mas essa é a opinião de um advogado analógico. Só acho que os idiomas disponíveis no tradutor do Google deveriam acrescentar “juridiquês” .

10 – Outro defensor da linguagem simples, Rogério Cruz, ministro do STJ, diz que a sua maior dificuldade é a de “minimizar a herança barroca e academicista do passado”. Como abandonar esse hábito, sem o risco de cair no extremo oposto, ou seja, na excessiva informalidade da linguagem e na superficialidade no trato do tema abordado?

O DNA do juridiquês está, como bem diz o ministro Rogério Cruz, no “beletrismo”, no bacharelismo colonial. Migrar para a leveza (prefiro esta à “informalidade”) é, a meu ver, uma mera questão de estilo. Quanto ao mencionado “risco no trato do tema abordado”, esse corresponderá à calibragem do uso da Inteligência Artificial.

11 – Muitos advogados conseguem ir além, viram poetas, romancistas, roteiristas, mas a maioria ainda é agarrada ao juridiquês. O fato é que as pessoas devem pensar sempre em quem vai ler. Se escreve apenas para juristas —em artigo acadêmico a ser publicado em uma revista tradicional —, o profissional pode usar todo o seu juridiquês e ser mais sofisticado, mas se escreve para um jornal a ser lido por leigos, deve se adaptar.

Olha, evito juridiquês até em litígio sobre Direito Canônico. Eu sempre curti escrever: frases, cartas, redações na escola e finalmente as peças relacionadas ao meu ofício. Minhas atividades literárias compreendem artigos jurídicos, esporadicamente textos opinativos para alguns órgãos de imprensa e, frequentemente, bobagens no Facebook e Instagram. Também participei de uma obra coletiva de crônicas e luto há três anos para concluir um romance. Sempre, como você disse, pensando no leitor.

12 – Como diria Schopenhauer, “o caminho da cabeça para o papel é muito mais fácil do que o caminho do papel para a cabeça”. Você concorda?

Depende do dia. E da noite.

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