De próprio punho, por Tatiana Roque: “Cacá Diegues mudou a minha vida”
"Um curta, quase desconhecido, que fala dos impactos da ditadura e me fez reencontrar uma pessoa amada"

Morreu Cacá Diegues e, com ele, um pedaço da nossa história. Um filme, dentre tantos tão relevantes, mudou minha vida: um curta, quase desconhecido, que fala dos impactos da ditadura e me fez reencontrar uma pessoa amada.
Meu pai (Lincoln Bicalho Roque)foi assassinado pela ditadura militar em março de 1973, quando eu tinha 2 anos. Não me lembro dele. Durante muito tempo, minha mãe disse que o Cacá Diegues tinha feito um documentário em que meu pai e ela atuavam, junto com outros jovens cujas vidas foram abaladas por aquele momento histórico.
Fomos atrás, mas o filme tinha se perdido. Na época da repressão, sobretudo depois do AI-5, muitas imagens se perderam ou tiveram que ser destruídas, pois poderiam ser usadas como prova fabricada (uma prática comum da ditadura). Só para dar uma ideia, eram usados os chamados “teatrinhos”. A repressão matava uma pessoa sob tortura e depois levava o corpo até um local público para simular um choque armado, que serviria como causa oficial da morte. As fotos que achei nos arquivos do DOPS comprovam isso – meu pai foi torturado e, já morto, levado ao Campo de São Cristóvão, onde foi simulado um tiroteio.
Enfim, fora essas fotos macabras, tenho muito poucas imagens do meu pai. Pode-se imaginar o que representaria vê-lo num filme — um sonho de adolescência que já parecia impossível, pois o filme tinha se perdido junto com boa parte de nossa memória da ditadura.
Um belo dia, eu, com mais de 30 anos, recebi um telefonema do Cacá Diegues. Atendi surpresa e quase caí para trás quando, muito carinhosamente, ele me disse que tinha achado o filme — houve uma enchente no Rio, e a água entrou na Cinemateca do MAM. No depósito, encontraram uma lata com o nome Cacá Diegues. Era o filme “Oito Universitários”, de 1967, e preservado. Um milagre! Cacá me convidou para assistir ao filme naquele mesmo dia.
Fui correndo. Com um milhão de borboletas no estômago, para ser apresentada a Lincoln Bicalho Roque, aquele pai herói que sempre quis tanto conhecer, de quem todos falavam maravilhas, e que a ditadura militar havia me tirado.
Imaginem a sensação de ver meu pai pela primeira vez: andando, falando, carinhoso com minha mãe. Um jeito tímido e firme, corajoso e ainda com traços de menino, com menos idade do que eu já tinha àquela altura, com um idealismo jovem e a convicção de quem sabia o que seria melhor para o país. Sim, tinha alguns traços do herói que idealizei a minha vida toda, mas também outros de que não fazia ideia, simplesmente humanos. Foi como se eu o tivesse encontrado – finalmente. Não o ícone projetado, mas a pessoa, de carne e osso, caminhando despretensiosamente no Campo de Santana. Olhei para o lado e pude, enfim, dizer: “Oi, pai!”.
Esse acontecimento mudou minha vida: no lugar de um pai imaginado, eu tinha agora uma imagem. O poder da imagem-movimento nunca esteve tão evidente. Ela mexe com sensações profundas que só o cinema consegue atingir.
Além de tudo, o filme é belíssimo! Com narração de Hugo Carvana e fotografia de David Neves, conta a história de oito universitários durante a ditadura, dentre eles, meu pai e minha mãe.
Depois daquele dia, Cacá organizou uma projeção com os sete protagonistas que ainda estavam vivos. Foi maravilhoso conhecê-los! Ele foi extremamente sensível e acolhedor com o que aquele acontecimento significava, para mim e todos os que ali estavam.
Muito obrigada, Cacá! Pelo cinema e por este filme.
Tatiana Roque é secretária de Ciência e Tecnologia da Prefeitura e professora titular do Instituto de Matemática da UFRJ. Seu livro “História da Matemática” (2013) foi um dos vencedores da categoria Ciências Exatas, Tecnologia e Informática do Prêmio Jabuti, e “O dia em que voltamos de Marte” (2021) foi finalista do mesmo prêmio.