Crônica, por Eduardo Affonso: O sonho americano
Brasileiros que tiverem de voltar dos EUA para o Brasil vão precisar de muito suporte psicológico para se readaptar

Sabe o que eu mais gosto em filme americano?
Eles deixam a chave do carro na ignição, e ninguém rouba.
Eles tomam leite direto da caixinha e o leite não azeda.
Eles bebem água da torneira, e não adoecem.
As camas têm um metro de altura.
As casas não têm muro, muito menos caco de vidro em cima do muro.
Ninguém tem empregada e as casas são todas limpas e arrumadas.
Eles batem a porta na cara do policial e fica por isso mesmo.
Nas delegacias tem gente para atender e a sala do delegado sempre tem persianas novinhas.
Não é só quartel que tem bandeira hasteada.
Os médicos vêm falar com a família do paciente na sala de espera do hospital como se a família do paciente fosse gente.
Envelope fecha com uma lambida, não precisa de cola.
Eles depositam as cartas numas caixas de coleta, na rua, e a carta chega ao destinatário.
Eles usam cheque.
Eles mandam cheque pelo Correio.
E o cheque também chega ao destinatário.
Corrida de táxi não dá valor quebrado, porque nunca vi taxista dar troco.
Não tem flanelinha.
Não tem trocador de ônibus.
Não tem frentista de posto de gasolina.
Adolescente beber cerveja é quase um ato revolucionário.
Até mendigo respeita a lei, bebendo seus litrões envolvidos em sacos de papel.
Menor de idade dirige.
Filhinho de papai trabalha.
Qualquer biboca no fim do mundo tem asfalto melhor que a Dutra, a Washington Luís, a Régis Bittencourt ou a Rio-Bahia.
Juízes resolvem pendências judiciais em horas ou minutos, não em décadas.
Enterros parecem festas blequitái. E, em vez de chorar e se descabelar, órfãos e viúvos fazem discursos engraçadinhos, tipo sitcom.
Quando as pessoas acabam de dizer o que tinham para dizer, elas simplesmente desligam o telefone, não ficam meia hora se despedindo.
Fala-se em 230 mil brasileiros morando ilegalmente nos Estados Unidos. Não sei se eles vivem nesse mundo dos filmes. Mas os que tiverem de voltar para o Brasil vão precisar de muito suporte psicológico para se readaptar ao mundo real.
