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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Crônica, por Eduardo Affonso: Não atire o pau no gato

"O sofrimento felino é inaceitável, e essa cantiga espelha práticas ultrapassadas, que reforçam padrões opressores"

Por lu.lacerda
13 abr 2025, 07h05
cronica affonso
 (IA/Internet)
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– Vera, a mãe do Kauê mandou um e-mail dizendo que ele chegou em casa cantando “Atirei o pau no gato”. E que ele só pode ter aprendido isso aqui, porque em casa eles não normalizam a violência contra animais. Você andou ensinando maus tratos recreativos?

– D. Patrícia, “Atirei o pau no gato” é uma cantiga tradicional e…

– Isso não é tradição, Vera. Você está dessensibilizando crianças em uma fase crucial de formação moral e emocional. Ao tratar agressão a um ser senciente como algo lúdico, você deslegitima a dor alheia. O sofrimento felino é inaceitável, e essa cantiga espelha práticas ultrapassadas, que reforçam padrões opressores.  A desconstrução de narrativas como esta é fundamental para a formação de uma infância baseada na empatia interespécies, dentro de uma ética inclusiva e compassiva.

– Pode deixar, dona Patrícia. Vou mudar a letra.

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­– Vera, a mãe do Lorenzo mando um zap…

– Mas eu mudei a letra para “Abracei o meu gatinho, nhô / Mas o gato tô / nem fugiu, giu giu /Dona Chica cá / Encantou-se se / Com o miado, com o miado que ele deu, miau!”

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– Vera, o uso do pronome possessivo “meu” reforça uma lógica de posse e apropriação em relação ao animal, perpetuando estruturas de dominação antropocêntrica, nas quais seres não humanos são vistos como propriedade de seres humanos. A frase “o gato nem fugiu” mostra que o animal estava privado de sua autonomia, evidenciando o cerceamento da sua liberdade de ir e vir. Melhore, Vera.

– Vou melhorar, d. Patrícia.

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– Vera..,

– Ah, não, d. Patrícia. Eu mudei a letra para “Encontrei um lindo gato tô / O gatinho nhô / me sorriu, riu, riu / Dona Chica cá / Encantou-se se / Com o carinho, com o carinho que ele deu, miau!

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– O pai da Mavie ficou horrorizado com a discriminação estética. Olha aqui a mensagem dele: “A qualificação “lindo gato” introduz um viés discriminatório baseado em aparência, sugerindo que apenas animais considerados belos são dignos de carinho e atenção, o que perpetua um imaginário excludente. Ademais, a atribuição de comportamento humano (“sorriu”) a um gato reforça uma lógica especista que, ao invés de reconhecer a alteridade e os modos próprios de ser dos animais, projeta sobre eles comportamentos e sentimentos humanos, obliterando sua singularidade ontológica”.

– Mas o Lewis Carroll…

– Você quer argumentar com quem usa “ademais” e “ontológica” num zap, Vera? Muda a letra.

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– D. Patrícia, mudei para “Vi um gato atravessar sar sar / De mansinho nhô / Ele passou sou sou / Dona Chica cá / Contemplou plou plou / O jeitinho, o jeitinho que ele andou, miau!

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–  A mãe do Martin deu um piti. Disse que você impôs uma expectativa de docilidade e passividade ao animal, que só seria admirável se agisse de maneira socialmente aceita. Isso invisibiliza a legitimidade de comportamentos naturais, como a agressividade, a impetuosidade, a livre expressão dos instintos.

– Mas…

– E esses diminutivos? “Jeitinho” reduz a complexidade do ser animal a uma imagem afetiva e infantilizada, desrespeitando sua dignidade como sujeito pleno e reforçando o olhar condescendente do humano sobre o não humano. Arruma isso já!

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– Vera, as mães da Zoé ameaçaram tirá-la da escola.

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– Mas a letra agora é “Observei um gato andar dar dar / Com seus passos sôs / Como quis quis quis / Dona Chica cá / Respeitou tou tou / A presença, a presença que ele quis, miau!

– Por que é que a pessoa que respeita tem de ser do gênero feminino? Isso perpetua a associação histórica entre a mulher e os papéis de passividade, reforçando o estereótipo de que cabe às mulheres serem mediadoras do cuidado e da aceitação. Além disso, o gato é referido no masculino (“um gato”), com a reprodução simbólica da ideia de que a mulher deve respeitar o espaço e a autonomia do macho, mantendo relações atávicas de poder e submissão. Não é difícil entender, né?

– Tá. Vou mudar para “Pelos campos vi passar sar sar / Ser de vida dá / A transitar tar tar / Todo ser ser ser / Ali presente tê / Compartilha, compartilha o caminhar”. Sem miado.

– Ótimo. Mas tire o capacitismo visual (“Vi passar”), que exclui pessoas com deficiência visual. E os verbos “transitar” e “caminhar”, que enfatizam o deslocamento físico como elemento de protagonismo existencial, e excluem os seres com deficiência locomotora.

– Tá bom.

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– E nem pense em usar a palavra “ser”, que pressupõe uma identidade fixa e essencializada, sugerindo que a existência seja definida por uma essência prévia e invariável. Isso contraria perspectivas pós-estruturalistas e pós-humanistas (como as do pai do Bento), nas quais a existência é fluida, processual, múltipla e não determinada a priori.

– Vou mudar para “No espaço vibra a trama má / Sem sujeito tô / a determinar, nar nar /Fluxo vivo vô / Se propaga gá / Sem fronteiras, sem fronteira a traçar”.

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– Vera, os pais da Luna acham intolerável essa insistência em que canções sigam estruturas métricas rígidas, com ritmo e rima previsíveis, o que reflete uma lógica autoritária de normatização cultural. Isso expõe as crianças a padrões sonoros que disciplinam sua sensibilidade, impondo limites artificiais à espontaneidade da criação, da percepção e da expressão. A métrica e a rima funcionam como dispositivos de contenção: moldam o pensamento em estruturas previsíveis, reforçam ideias de ordem, harmonia e simetria como valores absolutos, e deslegitimam formas mais livres, descontínuas, erráticas e plurais de experiência sonora. Para ser libertadora, uma canção que pretenda romper com o capacitismo, o especismo, o essencialismo, e também com o autoritarismo estético, não deve se prender a rimas, métricas ou cadências previsíveis. As palavras são deles…

– “O espaço acontece / Formas surgem e se desfazem / Respiram sem destino / Sem música que prenda / Sem palavra que capture”. Bom assim?

– Bom. Bom. Muito bom.

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– Ruim. Ruim. Muito ruim. A mãe da Olivia nos acusou de racismo. Para ela, “capturar” é gatilho, porque lembra os povos escravizados. E está tudo em português, língua do colonizador europeu, subalternizando falares alternativos, contribuições lexicais indígenas e africanas.

– Ok. “No sopro da mata / Pindorama canta / N’goma da brisa / Som do que é”. Agora atende, né?

– Amanhã saberemos.

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– Não atendeu, Vera. “Cantar” exclui os não se expressam por sons articulados em forma de canto. E “som” aliena pessoas com deficiência auditiva, sugerindo que a experiência sonora seja central para existir ou ser notado.

– Foi o pai da Manu, né?

– Ele mesmo. E ainda alertou que é preciso romper com o encadeamento cartesiano de causa, efeito, progressão e sentido, e abandonar a linguagem como instrumento de controle racional, típicos da civilização capitalista iluminista judaico-cristã ocidental.

– Deixa comigo

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– Vera, acho que finalmente você acertou o tom da cantiga do gato, quer dizer, aquela cantiga…

– Sim, agora é:

pindó
vraa cali vento?
luaçanga pni yayaããã
serraga pino explô
rrrã ventilaz lumpo
gumbe marecu voaçol zaa
!
coru ventã

– Perfeito. Ninguém vai ficar ofendido.

– Sei não. A turma detestou, e começou a cantar “Havia uma barata no capote do vovô / Assim que ela me viu / Bateu asas e voou / Seu Joaquim, quim quim / Da perna torta tá / Dançando valsa sá / Com a Maricota tá”.

– Tem algum Joaquim na turma?

– Quatro. E uma Maria Clara, que os sete Enzos e as três Sophias estão chamando de Maricota.

– Dispensa todo mundo, que eu estou fechando a escola.

 

Eduardo
(arquivo pessoal/Arquivo pessoal)
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