Crônica, por Eduardo Affonso: Fiat silentium
“Se você pudesse ter apenas cinco sentidos, de qual abriria mão?”

Escrevi há algum tempo um texto em que perguntava: “Se você pudesse ter apenas cinco sentidos, de qual abriria mão?”.
Faltou o meu sexto sentido me alertar que haveria alguém para lembrar que só há cinco sentidos e que, ao abrir mão de um, restariam quatro.
É que o sexto sentido, tão apurado em algumas pessoas, é meio capenga em outras – assim como há quem tenha olhos de lince e quem precise de um fundo de garrafa, quem perceba notas de violetas selvagens num vinho e quem mal consiga distinguir um branco de um tinto.
A visão parece ser o sentido mais importante. Tanto que Deus, logo no primeiro dia da criação, disse “Fiat lux!” (“Haja luz!”), não haja som, ou cheiro, ou gosto ou algo que se possa tocar. Deus viu que a luz era boa, separou a luz das trevas, chamou à luz dia e às trevas chamou noite. E já que era noite, foi dormir.
Fosse eu a criar o universo, teria começado por “Haja silêncio”. Separaria o silêncio do barulho, veria que o silêncio era bom – ou melhor, ouviria que o silêncio era bom – chamaria ao silêncio paz e ao barulho inferno. E iria dormir no escuro (a luz só seria criada depois), e no sossego.
Ainda no escuro e em absoluto silêncio, criaria o cheiro. É impensável um paraíso sem cheiro de goiaba, de manga ubá, de mexerica. Sem cheiro de pão de queijo, de pó de café, de alecrim, de manjericão. Sem cheiro de corpo suado, cheiro de carro novo, cheiro de mãe.
Separaria as coisas perfumadas daquelas inodoras ou fedidas (como pimentão, pum e perfume barato) e baniria esses últimos da face da Terra. Esse seria o segundo dia – ainda que não se pudesse falar em dia e noite, porque a luz não tinha sido criada e podia esperar mais um pouco.
No terceiro dia, um dia escuro, silencioso e perfumado, criaria o gosto. Seria o dia menos puxado da criação, porque o que cheira bem tem gosto bom. Mexerica, manga, nuca, boca, manjericão. E faria uma nota mental: ao criar, no sétimo dia, o ser humano, não esquecer de conectar os órgãos do olfato e do paladar.
Dormiria tendo na boca o gosto do suor de quem se ama (mesmo ainda não tendo inventado o ser humano ou o amor), o cheiro das ruas de Belo Horizonte quando é madrugada (mesmo Belo Horizonte ainda tendo que esperar por ser inventada) e com o a escuridão e o silêncio dos abismos do fundo do mar.
Acordaria no quarto dia disposto a dar maciez ou aspereza às coisas (coisas todavia inexistentes!), torná-las teimosas ou maleáveis, duras ou gentis à ponta dos dedos. Ainda no escuro e em silêncio, tatearia o invisível, o inaudível, imaginando que forma teriam as mangas, as coxas, os seixos nos rios, os seios, as águas dos rios, as mãos.
No quinto dia, dois antes do cronograma previsto, meu sexto sentido me diria para dar por encerrada a criação. As coisas e os seres existiriam apenas na imaginação – mas com cheiro, gosto e forma. Tudo no mais espesso silêncio, na mais compacta escuridão.
