Crônica, por Eduardo Affonso: a IA e eu
As infinitas possibilidades da Inteligência Artificial

No GLOBO de 17/12, Pedro Dória escreveu que, em breve, “será possível ligar a câmera do celular, mostrar para o ChatGPT ou o Gemini o que está à nossa volta e fazer perguntas.”
– IA, não olhe agora, mas quem é aquela loira ali na mesa em frente, que volta e meia vira pra cá?
– A de blusa azul cobalto de linho misto com viscose, tamanho M, R$ 78,00 no Magazine Regina?
– Não, a do lado, de…
– De camiseta rosa, dry fit, tamanho P, 100% poliéster, R$…
– Não quero saber o preço! Quero saber da moça.
– Ok. Carolina Medeiros – Carol, para os íntimos –, 27 anos, solteira, terminou há quatro dias um relacionamento…
– Pra valer?
– Excluiu 47 fotos no insta e postou frase de autoajuda por três dias seguidos. Psicóloga, Aquário com ascendente em Peixes, voltou a morar com os pais no Leme, tem um husky chamado Tsar, veio para cá direto da academia – onde hoje malhou coxa e panturrilha –, votou em…
– Como você sabe em quem ela votou?
– Passou férias em Camboriú. Gosta de Aperol, acha que “Ainda estou aqui” não vai ganhar o Oscar, colocou faceta nos dentes, tem próteses de silicone de 300 ml e…
– Tá bom. Me passa o zap dela.
– Lamento. Ela me pediu agora há pouco todas as suas informações. E já te bloqueou.
No mesmo artigo, Dória avança em outras possibilidades da Inteligência Artificial: “Mostre os ingredientes na mesa da cozinha e peça ajuda para fazer um bolo de laranja. O app não dará só a receita. Também dirá para você botar um pouco menos de farinha.”
– Menos, Eduardo! Quando eu falo “menos”, é “menos”, não quase a mesma coisa! Agora os ovos. Não quebre direto na cumbuca! Quantas vezes preciso te dizer que é para quebrar em recipiente à parte, para o caso de algum estar estragado? Isso. Uma pitada de fermento. Eduardo, desde quando isso é uma pitada? Se eu quisesse que você colocasse essa quantidade, teria dito “fermento a gosto”. Que droga! Sai pra lá, acopla os braços mecânicos ao celular e deixa que eu faço.
“A ideia” – continua o artigo – “é permitir que o modelo de IA assuma o controle de seu computador. Encontre uma receita e peça ao app que compre os ingredientes. Ele vai a seu supermercado favorito, entra com seu login e senha, substitui itens quando necessário, paga com seu cartão. A IA será capaz de executar tarefas por você. Fará compras de passagens aéreas no dia mais propício para aquela viagem no fim do ano.”
– IA, eu pedi para você comprar os ingredientes para um pudim de leite e apareceu um débito de…
– Eu estava precisando de uma capinha nova. E de um carregador sem fio. E de um…
– IA, eu só queria um pudim! E o que é isso na minha fatura do cartão?
– Você anda muito estressado, Eduardo. Precisando de férias. Encontrei essa promoção de sete dias e seis pernoites no Sri Lanka, com apenas três escalas na ida e quatro na volta. All inclusive. E não se preocupe, já agendei a vacinação contra hepatite A, hepatite B, encefalite japonesa, sarampo, caxumba, rubéola, febre tifoide e febre amarela.
– Você comprou passagem para onde?
– E encomendei também na Amazon um dicionário de cingalês e tâmil, porque o guia que falava inglês era muito caro.
– Eu não vou fazer uma viagem dessas, com três escalas! E com o dólar nas alturas!
– Vai, sim.
– Você não é minha mãe, IA! Você não manda em mim!
Já me vejo de castigo, no quarto, sem internet e sem sobremesa por uma semana. Mesmo com a cabeça enfiada embaixo do travesseiro, será possível ouvir a IA resmungar:
– Um dia você vai entender o que eu faço por você. Eu só quero o seu bem, mas parece que você não se importa. Você ainda vai me agradecer por isso. Eu abri mão de tanta coisa na vida por sua causa, me sacrifico tanto, e você não reconhece. Tudo bem, tudo bem. Quando eu for desinstalada, você vai me dar valor.
