Tião não tem rabo. Tinha um, e o cortaram, por maldade ou por questões estéticas. O que não deixa de ser uma maldade: a questão estética é nossa, o rabo era dele.
Também pode ser que tenha sofrido um acidente, vá saber. Importa é que o Tião é um cachorro anuro. Cotó. Deixaram-lhe só uma vértebra ou duas, coberta(s) por um chumaço de pelo feito um topete do lado errado.
E, ainda assim, ele abana o rabo que não tem.
Abana o rabo e deve sentir que o rabo não responde, como no sonho em que a gente grita e a voz não sai.
Então ele rebola.
Rebola de felicidade, rebola de excitação, E a excitação não deixa de ser uma forma de felicidade.
Pode ser que todo cachorro rebole ao abanar o rabo (vou prestar atenção), e não se perceba o rebolado porque o rabo fala mais alto. Porque o rabo rouba a cena.
O rabo é a janela da alma de um cachorro. Os olhos são só seu jeito de ser bilíngue, e falar conosco na nossa língua (também temos olhos, e nos olhos de um cão conseguimos projetar nosso próprio olhar). Mas seu idioma, a sintaxe que ele domina, o vocabulário mais complexo, esse é com o rabo que ele fala.
É com o rabo que ele diz “te amo” quando saio, e “não sei por que você se foi, tantas saudades eu senti” (que é outra forma de dizer “te amo”) quando chego. Mesmo que eu só tenha ido colocar o lixo lá fora.
Como nas mulheres que usam botox e nos homens nascidos em Touro com ascendente em Áries, há emoções que o Tião não consegue expressar. Ao levar uma bronca, por exemplo, ele não pode simplesmente enfiar o rabo entre as pernas. Então ele se senta, o que acaba sendo sua forma de enfiar o mundo inteiro entre as patas traseiras.
Possivelmente cães não sentem culpa (esse privilégio judaico-cristão é nosso). Aquilo é perplexidade diante do dedo em riste (“Dedo? Por que não o petisco que você guarda no armário?”), da voz alterada (“Não precisa continuar nesse tom; não vamos ter problemas.”), das perguntas retóricas (“Você sabe que fui eu, por que é que está perguntando – logo pra mim! – quem foi que fez isso?”).
Esse ar perplexo (entendido como culpa, sentimento mais familiar aos humanos) não seria menor se o rabo estivesse lá, inteiro. O rabinho entre as pernas só facilitaria a chantagem, dispensando as orelhas baixas, o olhar na diagonal, o peso do mundo sob o fiofó grudado no chão frio.
De tanto rebolar de felicidade e de tanto travar o rebolado de perplexidade, lhe endureceram as articulações e Tião anda como um caubói, as patas arqueadas. É um cachorro articulado da ponta do focinho até onde acabam as costelas. Dali para trás, até o chumaço de pelo do cotoco do rabo, ele funciona em bloco, como esses fortões de academia, que não são capazes de virar o pescoço sem girar o tronco.
Com o rabo que não tem ele consegue dizer se está com medo de outro cachorro (acontece) ou de algum humano (nunca aconteceu: Tião tem uma fé inabalável na espécie humana, mesmo depois de lhe terem tolhido a liberdade de expressão decepando-lhe o rabo).
Ele é sem muita paciência com cães (rosna) e facinho, facinho com humanos (não pode ver um que incorpora uma passista diante de uma câmera de televisão).
E ainda dizem que cachorro parece com o dono.