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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Affonso: “Alguém que não ouve os vizinhos não sabe viver em coletividade”

"Seu Eduardo, Cléversson, da portaria. Boa noite. É dona Gladys, do 412, reclamando do barulho da sua televisão"

Por lu.lacerda
Atualizado em 3 ago 2025, 07h55 - Publicado em 3 ago 2025, 07h05
cronica
 (IA/Divulgação)
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23h20. Toca o interfone.

– Seu Eduardo, Cléversson, da portaria. Boa noite. É dona Gladys, do 412, reclamando do barulho da sua televisão.

– Boa noite, Cléversson. Minha televisão está desligada.

– Pois é, mas a dona Gladys só dorme com televisão ligada. Como a dela foi pro conserto, o silêncio da sua televisão desligada não está deixando ela dormir. O senhor poderia ligar, por favor?

Ligo. Baixinho. Mas depois aumento o volume, para evitar que o Cléversson ligue de novo daqui a pouco, com a reclamação de que o barulho está baixo demais.

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Ao contrário da dona Gladys, do 412, eu não consigo dormir com televisão ligada. Então, assim como faço quando ela liga a dela, boto os plugues de cera no ouvido, tomo um Rivotril e volto pra cama. Por pouco tempo.

– Seu Eduardo, Cléversson, da portaria, de novo.

Olho o relógio: uma da madrugada.

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– É a dona Selma, do 304. Disse que o senhor não está arrastando móvel.

Não, não estou. Estava dormindo, com os móveis – imóveis – em seus lugares.

– Se o senhor continuar em silêncio, sem arrastar nada, ela não consegue pegar no sono.

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Droga: tinha me esquecido de colocar o despertador para levantar de madrugada e arrastar alguma coisa pela casa, ou dona Selma, do apartamento abaixo do meu, reclama. É que a vizinha de cima, dona Regina, do 504, deve ter viajado, e já não me acorda arrastando mesas, cadeiras, sofás cada vez que vai ao banheiro (e ela vai mais ao banheiro numa noite do que eu à tecla de bloqueio de ligações indesejadas no celular em uma semana). Isso me lembrava que tinha de arrastar alguma coisa também – mesmo que não precisasse ir ao banheiro, e no caminho da cama até o banheiro não houvesse móvel algum.  Aviso que vou arrastar umas cadeiras, e desligo o interfone.

Sou um condômino rebelde. O regulamento interno não deixa dúvida: “É terminantemente proibido fazer silêncio entre as 22h e às 6h da manhã”. Já levei advertência por usar fone de ouvido para ouvir música na academia e multa por ter dado uma festa em que nenhum convidado foi gritar na varanda.

Toda vez que vou pegar a chave do bicicletário na administração, percebo os olhares de reprovação dos funcionários, cansados de anotar “Morador notificado” sempre que meu nome aparece no livro de reclamação (“O cachorro dele não late hora nenhuma. É um inferno!”, “Da minha sala não dá pra ouvir nada do que se passa naquele apartamento!”, “Será que ele não sabe que furadeira é pra usar?”). Seu Alcyr, o subsíndico, viúvo e aposentado, que puxa conversa com qualquer um, já não fala mais comigo. Virei um pária.

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6h da manhã. Me levanto e encontro um envelope sob a porta. É um ultimato, assinado por dona Darcy, a síndica, e pelos conselheiros Moacir (201), Djalma (507) e Itagiba (109). A fim de que não seja necessário tomar providências legais, o condomínio exige que eu comece, em até 24 horas, uma obra interminável em meu apartamento (com emprego de maquitas, marretas, martelos e marteletes), use a furadeira por pelo menos quatro horas diárias (ininterruptas ou com intervalos regulares de cinco décimos de segundo), tenha filhos ou netos que berrem palavrões na quadra (em caso de infertilidade comprovada, serão aceitos sobrinhos ou agregados) e arranque o feltro que (eles não têm dúvidas) eu devo ter colocado nos pés de todo o mobiliário.

A convenção é clara – e tá lá a cópia do artigo, pregada com durex no espelho do elevador, para quem tiver dúvida: “O seu direito ao silêncio termina onde começa o direito ao barulho do vizinho”.

Amanhã mesmo eu compro os tamancos. E um equipamento de caraoquê. Aí só fica faltando aprender a letra de “Evidências”.

Eduardo
(arquivo pessoal/Arquivo pessoal)
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