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Gustavo Pinheiro

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Sala, cozinha e dois quartos com vista para vizinho bolsonarista

A pandemia obrigará que os anúncios imobiliários tragam informações detalhadas sobre os vizinhos

Por Gustavo Pinheiro
Atualizado em 21 Maio 2020, 10h30 - Publicado em 20 Maio 2020, 18h50
Estamos obrigados a conviver intensamente com esses íntimos estranhos com quem compartilhamos portarias ou calçadas.  (Bianca Smanio/Reprodução)
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Foi ainda no começo da quarentena. O filho da vizinha do andar debaixo bateu um recorde: conseguiu gritar, pular e correr por horas a fio, começando às nove da manhã. Uma rave particular, embalada pela música de algum desenho infantil, no modo repeat. Dadas as circunstâncias do confinamento, eu tentei relevar. Liguei o ar condicionado, contei até dez, bati um bolo de chocolate, marotenei Netflix. Mas às oito da noite o pestinha me venceu. Gritei um ruidoso “sssshhhhh” e bati a janela. Ainda deu tempo de ouvir impropérios da mãe, irritada com a minha queixa. O episódio me desgastou num grau que eu não consegui pregar os olhos a noite toda. Aquele que foi à janela pedir que alguém cale a boca não era eu. No dia seguinte, abalado pela culpa e munido de uma farta fatia do bolo feito na véspera, bati à porta da vizinha. Ela abriu, surpresa. Pedi desculpas, confessando meu cansaço. Foi a chave para ela baixar a guarda. “Se você está exausto, imagine eu”, me disse com os olhos marejados. Meu bem estar foi tamanho que voltei em casa, fatiei o bolo inteiro e o distribuí para todos os vizinhos do andar.

Para além das provações que estamos submetidos, ainda somos obrigados a conviver intensamente com esses íntimos estranhos com quem compartilhamos portarias ou calçadas. Leio que o silêncio da quarentena tem feito as pessoas escutarem passarinhos. Pois aqui em casa os últimos meses foram marcados pela invasão de uma sinfonia indesejada dos vizinhos nunca antes percebida: liquidificador, panela de pipoca, reuniões de trabalho no viva voz do celular, aspirador de pó, um sexo bem mais ou menos no primeiro andar e a perda de paciência com um tal Joaquim que, pelos gritos dos pais, não é uma criança tranquila.

Nem sempre a relação com os vizinhos terminam em fatias de bolo conciliadoras. No panelaço contra Bolsonaro, no dia em que ele chamou o coronavírus de “gripezinha” enquanto a doença já matava às centenas na Europa e na China, enchi o peito para gritar “Fora Bolsonaro!”. Do prédio em frente, veio a surpreendente réplica “Respeita a democracia!”. Choque. Alguém muito próximo estava concordando com aquilo. Minha tréplica foi com um “Genocida! Assassino!”, que encerrou o assunto. Isso tudo da janela do meu quarto. Desde então, todo dia de manhã, dou de cara com esse senhor bolsonarista e sua grande barriga, agarrado ao celular e assistindo a CNN, com aquela tatuagem colorida desbotada no ombro direito. Então alguém que faz parte dos tais 33% que apoiam o fascismo tropical mora bem ali, com direito ao sol da manhã. E mais grave: escolheu aquela persiana bege horrorosa para sua sala. Esse senhor sempre esteve ali e eu só o descobri agora? Desde a queda do Mandetta, ele se limitou a fechar a janela nos últimos panelaços. Deve estar difícil defender o indefensável, mesmo em nome da democracia.

Uma amiga, moradora da Gávea, entrou em guerra com os vizinhos. Trancada em casa há 60 dias com uma criança de dois anos, ela observava da janela, angustiada, um punhado de moradores se achando no direito de entreter seus anjinhos no play. Apesar das regras impostas de isolamento social, todo mundo sem máscara, batendo papo, com se estivessem de férias. Alguns mandavam as babás – afinal a classe média não pode abrir mão das babás – para a batalha campal de entreter os pimpolhos. Até que uma delas contraiu a Covid-19 e continuou frequentando o playground! Por que não? É só uma gripezinha… Até que a gripezinha matou a babá, que foi rapidamente substituída por outra. A nova funcionária – alguém se surpreende? – também já está frequentando o play.

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Outra amiga, no mesmo bairro, conta que durante os panelaços o vizinho da frente coloca o Hino Nacional nas alturas e se entrega à pratica de tiro ao alvo com espingarda de ar comprimido na varanda, devidamente ornada com a bandeira nacional. Enquanto ela bate panelas, ele atira. O alvo, pelo menos, ainda não é ela. Ainda.

Fala-se que muito mudará no mundo pós-pandemia. Será? O certo é que, a partir de agora, os anúncios de jornal deverão trazer informações detalhadas não apenas sobre o imóvel, mas também sobre os vizinhos. “Quadríssima da praia. Vista para vizinho bolsonarista. Precisando de reformas”.

Gustavo Pinheiro é dramaturgo e roteirista.

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