Rebolado
Na sexta-feira que antecede o longo feriado de Carnaval, subi a serra em direção a Minas, para o retiro na fazenda de amigos, longe da folia de fevereiro. Meu filho quis sair para cavalgar, e eu, mãe zelosa, fui com ele. Jamais tive domínio das rédeas. Sou uma cavaleira pífia, daquelas para as quais o […]
Na sexta-feira que antecede o longo feriado de Carnaval, subi a serra em direção a Minas, para o retiro na fazenda de amigos, longe da folia de fevereiro. Meu filho quis sair para cavalgar, e eu, mãe zelosa, fui com ele.
Jamais tive domínio das rédeas. Sou uma cavaleira pífia, daquelas para as quais o bicho estabelece, de cara, que quem está no comando é ele.
Mas os cavalos dessa fazenda são especiais, domados sem trauma e piedosos com seres inferiores como eu. Saímos no fim da tarde, atravessamos florestas e pastos virgens, onde rebanhos se espalhavam entre os morros sem fim. Na subida de um deles, urubus voavam baixo, em torno de um bezerro recém-falecido, estirado no meio do campo. Uma paisagem digna de Grande Sertão, de Os Sertões, que nunca mais vou apagar da memória.
Já na volta, na última ladeira antes da porteira de casa, aceleramos o passo montanha acima. De repente, do nada, meu cavalão deu para corcovear. Ouvi o guia soltar uma ordem de comando para que o animal se acalmasse, mas o grito não surtiu nenhum efeito. O mundo entrou em câmera lenta. Senti as costas do bicho subir e descer duas vezes, meu corpo pendeu para o lado direito, notei a proximidade da cerca de arame farpado, calculei o risco de cair
sobre ela, rodei no dorso do animal, vi a barriga de lado, as pernas na contraluz do poente, rezei para não ser pisoteada, até sentir o impacto seco, de chapa, na lombar, que deu fim à edição das imagens.
Lá se foi o cavalo.
Eu permaneci deitada, na relva, enquanto o tempo retomava o seu tique-taque normal. Mexi os dedos dos pés, o guia veio me auxiliar, notei a sela caída no chão e fui informada de que a barrigueira havia se soltado, por isso eu fora ao chão. Me veio um sentimento idiota, o orgulho de não ter sido culpa nem minha nem do animal. E um alívio imenso de sentir as pernas. Os músculos travados, a calma para me pôr de pé e voltar caminhando até o estábulo.
A queda me impediu de desfilar na campeã Mangueira, que homenageou Bethânia, e de arriscar uma rebolada num bloco tardio de Carnaval. Passei a festa na ressonância, e qual não foi minha surpresa ao descobrir que a L3, vértebra do baixo lombar, estava fraturada. Passarei um mês no estaleiro.
Cavalo é um deleite e um risco. Montar dá uma sensação indizível de estar próximo daquilo que falta na vida biônica das cidades, de experimentar ser centauro, bicho e gente. Os urubus daquela tarde bem que avisaram: a natureza pode ser bela e cruel. Me custou o traseiro, mas guardo as lembranças mais lindas daquele fim de tarde em Minas. Valeu a L3.
Passei o Carnaval em casa, assistindo a parte do desfile das escolas de samba, antes de o relaxante muscular me levar para o além. Amei os exus do Salgueiro, as baianas Carmens, as pombagiras de Bizet, e as Aídas do Saara com o R$ 1,99 pendurado na peruca egípcia. Ai, como eu amo o samba do crioulo doido dos carnavalescos da Sapucaí. É siri com Toddy, como diria uma amiga baiana.
Daqui a um mês, estarei com a rabiola refeita. Assim espero. 2017 que me aguarde.