Odores
Um amigo, em visita à China, confessou a um nativo que estranhava o cheiro do povo dele. Irônico, o oriental respondeu que os brancos também emanavam um odor característico, nem sempre agradável, de leite azedo. Culpa dos laticínios que vocês consomem, concluiu o chinês. Há uns oito anos, descobri um professor de ioga indiano que […]
Um amigo, em visita à China, confessou a um nativo que estranhava o cheiro do povo dele. Irônico, o oriental respondeu que os brancos também emanavam um odor característico, nem sempre agradável, de leite azedo. Culpa dos laticínios que vocês consomem, concluiu o chinês.
Há uns oito anos, descobri um professor de ioga indiano que atendia pelo nome de Swami, mais um título de professor do que uma alcunha. Swami era dono de muitas peculiaridades, tinha cicatrizes em forma de cruz nas pernas, adquiridas, segundo ele, durante uma guerra religiosa no Paquistão. Swami defendia a mentira caridosa e se valia dela de maneira compulsiva. Era comum chegar atrasado com desculpas delirantes, que envolviam, invariavelmente, duelos pela própria vida.
Uma amiga contratou seus serviços e, depois de um jantar regado a alho, recebeu o Swami para uma aula matinal.
O mestre mal conseguiu esconder o nojo. Quase no fim da sessão, segredou à aluna que o alho é um tempero bissexto na Índia, mais usado para espantar maus espíritos do que para enriquecer o sabor das carnes.
Adoro alho, embora o evite. Sei de seus valores medicinais, mas entendo o Swami. O Allium sativum resiste não só no paladar, mas no suor da pele do dia seguinte.
A culinária brasileira abusa muito do tempero. Fui a um rodízio de peixes outro dia em que o bacalhau e o robalo, a sardinha e o cherne, peixes de couro e de escama, moluscos, crustáceos e coquilles, tudo tinha gosto de “saralho”.
O condimento também reina nas feijoadas. O caldinho aperitivo já coroa os convivas com um bafo de onça na entrada. O alho da couve e o perfume do feijão e dos pés de porco fazem do ar uma parede sólida que, acredito, causa estranheza a narizes gringos em visita ao Brasil.
Bela Gil me apresentou à sua feijoada vegetariana.
Foi uma revelação. Além de manter o sabor da original, a iguaria não dá mau hálito. Eu me sentei à mesa incrédula, tenho horror a tofu, carne de soja e derivados. Bati três pratos e continuei leve. A ausência de gordura não deixa ranço e até o alho da couve morreu com a última garfada. Sou fresca, assumo. Não gosto de continuar sentindo o gosto da comida depois da sobremesa.
Assim como o Swami estranha os vapores da minha terra, a Índia, para um visitante, possui aromas contraditórios; uma mistura de especiaria com enxofre, cominho com sulfa, curry com gás metano.
Meu cônjuge foi filmar na África e contou que os belíssimos massais, grupo étnico de estatura elevadíssima que vive entre o Quênia e a Tanzânia, cheiram tão forte que é difícil aproximar-se deles. Os massais se alimentam de uma coalhada feita com leite talhado e sangue de boi.
Se o mandarim reclamava do abuso do leite pelos ocidentais, imagine o que pensaria do azedume de tal dieta.
Não desejo ser indelicada com nenhum povo. É que sou parente de índio, tenho uma avó maranhense. Fora o perfume algo enjoativo do urucum, os índios do Xingu com os quais convivi tinham um hálito doce e agradável. Não bebiam, não comiam fritura, gordura, queijo nem manteiga. Viviam de peixe moqueado, tapioca e frutas. Cheiravam a paraíso, mas sonhavam à noite com um bom pernil.