Imagem Blog

Fernanda Torres

Por Blog Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog da atriz Fernanda Torres

Manos

Eu me aproximei com relutância do caixão sobre os trilhos no crematório. Millôr estava lá. Conforme o rosto foi se fazendo nítido por debaixo da gaze branca, uma expressão irônica, quase um sorriso, apesar da boca arqueada para baixo, parecia revelar na carne a marca do seu espírito livre “como um táxi”. Gravatá, escudeiro fiel, […]

Por admin
Atualizado em 25 fev 2017, 19h26 - Publicado em 7 abr 2012, 01h01
 (/)
Continua após publicidade

manos

Eu me aproximei com relutância do caixão sobre os trilhos no crematório. Millôr estava lá. Conforme o rosto foi se fazendo nítido por debaixo da gaze branca, uma expressão irônica, quase um sorriso, apesar da boca arqueada para baixo, parecia revelar na carne a marca do seu espírito livre “como um táxi”. Gravatá, escudeiro fiel, me contaria na saída que, quando Millôr ainda estava no hospital, recém-saído do coma e zonzo entre os dois mundos, a doutora teria perguntado “o que houve?” e ele respondeu: “Ouve com o ou com h?”.

Não me atrevo a escrever sobre o maior jogador de frescobol que Ipanema já conheceu. Angeli fez uma charge em que um destroço de letras monumental surge boiando no oceano. Na praia, uma senhorinha explica ao marido: “É Millôr”. Tem toda a razão o Angeli. O homem é vasto demais, inteligente demais, impressionante demais, para ser resumido.

Além do mais, Millôr pertence aos meus pais. Graças à parceria dos três, tive o privilégio de conviver desde pequena com o gênio do Méier. Era uma amizade reverente, não podia ser diferente, Millôr já era Millôr muito antes de os Fernandos serem alguém; astro de O Cruzeiro e fundador do Pif-Paf.

Nos últimos anos, minha mãe viu desaparecer grande parte das referências de sua vida inteira: meu pai, Ítalo Rossi, Sérgio Britto, Paulo Autran, Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman. No dia em que o Millôr foi embora, conversamos mais uma vez sobre as perdas e eu quis confortá-la, dizendo que seres que não estavam lá antes, como os filhos adultos, os netos e os recém-conhecidos, vinham contrabalançar as terríveis ausências. Mas é mentira, nada substitui as testemunhas do tempo, os que passaram pelas mesmas experiências históricas, filosóficas, profissionais, partidárias e amorosas. Nada se compara a um amigo de longa data.

Continua após a publicidade

No sábado seguinte ao velório, fui assistir ao inesquecível show de Gal Costa, concebido por Caetano e Moreno Veloso. Miranda, a nova casa de shows da Lagoa, tem um som primoroso, à altura da voz, “a” voz tamanha da baiana mítica.

Nessa mesma semana intensa, a caminho do show Las Vegas de Roger Waters, no Engenhão, meu enteado de 17 anos me mostrou na internet um vídeo de Tom Zé enaltecendo Gal que eu não conhecia. Ela, deslumbrante, com um chapéu de aba larga de feltro claro, cuja sombra deixava apenas a bocona à mostra, esmerilhava em Minha Estupidez. Doeu de tão belo. Pedro escuta sem parar Domingo, Legal, Fa-Tal, Índia, Água Viva e Cantar. Agora, vai ter a sorte de ver a estrela ao vivo, retomando a Gal de outrora; dona, como nenhum outro dos baianos imortais, do dom sagrado de cantar.

Chorei muito no show. Não é roteiro, é dramaturgia. Sem nenhum cenário, ou luzes bregas, as músicas se sucedem entre a melancolia e o gozo. As novas composições, de uma tristeza infinita, se fundem com uma seleção preciosa do que Gal entoou de melhor. Ela está solta, poderosa e feliz, deslavadamente feliz. Só o mano Caetano para saber de Maria da Graça assim. A ligação dos dois permeia tudo e é a razão de ser do espetáculo, além do canto, é claro.

Continua após a publicidade

A presença de Domenico, Pedro Baby e Bruno di Lulo traduz o que tentei dizer à minha mãe para lhe aplacar a dor: o tempo toma, mas também dá em troca. Os três moleques que não existiam antes, assim como meu enteado, cresceram imersos nos trinados da musa e, hoje, retribuem no palco o que descobriram com ela. Moreno trouxe a turma para dentro de casa e provocou no pai a vontade de revisitar o caráter experimental de Transa. Em Recanto, Caetano completa a volta, convidando a diva para o êxtase da adolescência madura. No dia em que chegarem ao Circo Voador, a rainha vai sair carregada nos braços do povo e tomar a Bastilha.

Vapor Barato consegue ser igual ou, arrisco dizer, maior do que a versão original. Gal canta virada para Baby, este lhe concede uma reverência, olho no olho, e ela estende os braços para o solo de guitarra do herdeiro de Baby e Pepeu. “Está rolando um amor”, diz ele.

De fato. Um pequeno momento puro de amor.

Amigos, melhor tê-los. Filhos, também.

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Assinantes da cidade do RJ

A partir de 35,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.