Infelicidade
No Salão do Livro de Paris deste ano, um espectador quis saber das influências literárias de Cristovão Tezza. O escritor respondeu que autores diferentes o inspiraram, em momentos diversos da vida; mas que o verdadeiro impulso do escritor, aquilo que o motivava de fato a escrever, era, sem dúvida, a infelicidade. Ovação Já passava da […]
No Salão do Livro de Paris deste ano, um espectador quis saber das influências literárias de Cristovão Tezza. O escritor respondeu que autores diferentes o inspiraram, em momentos diversos da vida; mas que o verdadeiro impulso do escritor, aquilo que o motivava de fato a escrever, era, sem dúvida, a infelicidade.
Ovação
Já passava da 1 da madruga quando terminei de assistir ao documentário de Brett Morgen, Montage of a Heck, sobre Kurt Cobain. Desliguei a TV deprimida, com um misto de culpa e veneração.
O poeta, mais do que o escritor, é um infeliz nato; e Cobain, um caso exemplar da tese do Tezza. Hiperativo, tomou Ritalina na infância e enfrentou a humilhação do pai. Desde cedo, padeceu de angústia e dores crônicas no estômago. Um sofrimento tão ligado à própria criação que ele confessa, já adulto, temer curar a dor em detrimento da inspiração.
O divórcio dos pais o transforma num adolescente rejeitado e destrutivo, jogado de casa em casa, que encontra no punk, e nas drogas, expressão e saída para o desamparo. Cobain é um anjo caído, trazido à luz graças ao estupendo Nevermind.
Morgen acerta ao ilustrar a mente ávida, em perpétuo movimento de Cobain, usando o recurso da animação, tanto nos cadernos de desenho e anotações do compositor quanto nas gravações de voz que costumava fazer a sós.
Sim, a solidão é irmã da infelicidade, e o músico as cultiva com igual zelo.
Cobain se sentia pleno nos concertos para milhões, naquilo que Jimmy Page chamou de missa demoníaca, capaz de expurgar a ira dos piores exus. Num show no Brasil, ele caminha até a câmera e, em close, cospe na lente. É sintomático.
A mudez do ídolo diante da enxurrada de repórteres medíocres diz muito a respeito da sua integridade de artista. “Está tudo na música!”, argumenta o baixista Novoselic, na tentativa de se livrar de mais um microfone em riste.
É em meio à glória e seu cortejo de horrores que surge a Lilith, Courtney Love.
Ao contrário de Cobain, Courtney anseia os holofotes. A entrevista que concede nos dias de hoje comprova a suspeita de que a marginal de outrora era fachada para a loura botocada de agora. Courtney é doida, mas dona de um ego banal.
As cenas íntimas do casal chocam até por terem sido registradas.
Alucinados, os dois dançam seminus pela casa recém-comprada. Cobain fala mal de Axl Rose. Grávida, o mulherão queixudo monta a cavalo no marido magro, numa imagem que faz lembrar O Senhor Puntila e Seu Criado Matti, e ambos improvisam uma canção.
Fenemê desgovernado, ela encarna o papel de mãe, amante e parceira. Não há transcendência em Courtney, sobra vaidade e falta tristeza.
A culpa me bateu nas cenas em que Cobain segura a filha bebê no colo, dormindo em pé, heroinado. A menina sorri desconfiada, já percebendo a barra que a trouxe ao mundo.
Tive vergonha aí, pudor de estar atrás da lente em que ele, um dia, cuspiu.
Gus Van Sant foi fiel ao cantor em Last Days, retratando-o como um animal fugidio, avesso aos vivos. Um bicho isolado, selvagem, depressivo e poético.
Já Courtney… essa bem que podia ter acabado com Axl.