Dia de sol na Guanabara, nove anos da morte de meu pai. A família rumou para a missa no Mosteiro de São Bento para relembrar a data.
O trânsito no Centro corria bem, muitas lojas fechadas e tapumes de madeira nas vidraças dos bancos. Alguma manifestação prevista, que justificasse a proteção? Não, era um dia comum. A prevenção tornou-se regra.
Uma amiga só conseguiu chegar no meio da cerimônia, parecia nervosa. Ao fim da missa, explicou o transtorno.
A bordo de um Uber, ela desceu a Ataulfo de Paiva, em direção ao Jardim de Alah, a caminho do Túnel Rebouças. Ao virar à esquerda, no início da Epitácio Pessoa, cinco homens armados de fuzis, FUZIS, interceptaram o carro. Nervosos, exigiam que motorista e passageira abandonassem o veículo; o que foi feito, com prontidão.
Atordoada, ela ficou parada, vendo a condução afastar-se, e o dia retornou à normalidade habitual. Não houve notícia, não houve alarde, nada. Nossa amiga tomou um táxi e a vida seguiu.
Um mês antes, um funcionário do escritório dela, habitante da Vila Cruzeiro, retornava para casa de carona com um amigo, quando o carro foi abordado por um bando na Avenida Brasil. Violentos, os pistoleiros jogaram os dois no asfalto e arrancaram, esfacelando o tornozelo do rapaz com a roda.
A poucos quarteirões da esquina em que nossa amiga foi assaltada, a loja do Ponto Frio, no cruzamento da Henrique Dummont com a Ataulfo, seria invadida, dias depois, por homens armados de fuzis semelhantes aos da ação que a deixou a pé no Jardim de Alah. Dessa vez, a ocorrência saiu nos jornais.
Assustados com a terra de ninguém, muitos cariocas cogitam deixar a cidade. Mas o Rio não está sozinho na escalada de violência que enfrenta o país.
Um amigo, a bordo de um táxi em São Paulo, foi surpreendido por um paralelepípedo jogado de encontro à janela. Depois de arremessar o pedregulho, o gatuno invadiu o veículo com um três oitão em riste. Levou tudo, dinheiro e pertences, do passageiro e do condutor, mas a vítima telefonava aliviada, estava viva, afinal.
O desarranjo social e moral é endêmico. Ele é notório tanto na ousadia das gangues de rua quanto na falta de vergonha dos que traficam malas de dinheiro em pizzarias e apartamentos suspeitos.
Que diferença existe entre Geddel Vieira e o ladrão do paralelepípedo? Entre os cinco fuzis da Epitácio Pessoa e os acordos espúrios do Grupo JBS? Um é fruto do outro. Cada nota contada pela impressão digital de Geddel, cada sapato Louboutin da ex-primeira-dama do Rio, corresponde a uma escola, uma creche e um hospital, a uma tubulação de esgoto a menos nas comunidades carentes.
E cada creche faltosa, cada escola em ruínas, significa um garoto a mais cooptado pelo crime, um bonde de arruaceiros a mais em Copacabana.
Vestidos de terno Ermenegildo Zegna ou adornados com guardanapos de restaurantes chiques em Paris, os integrantes das quadrilhas que pilharam o Erário têm relação direta com o caos social que cidadãos comuns enfrentam, hoje, ao cruzar uma esquina.