Azul
A vida adulta me afastou do cinema. Minto, os filhos me mantiveram fiéis aos títulos infantis. Tive sorte. Nos últimos quinze anos, Hollywood produziu obras excepcionais para crianças que ocuparam o lugar dos filmes-cabeça, sem que eu me desse conta da falta. Não me apetece a produção independente americana, sempre niilista, melancólica, psicológica. A dos […]
A vida adulta me afastou do cinema. Minto, os filhos me mantiveram fiéis aos títulos infantis. Tive sorte. Nos últimos quinze anos, Hollywood produziu obras excepcionais para crianças que ocuparam o lugar dos filmes-cabeça, sem que eu me desse conta da falta.
Não me apetece a produção independente americana, sempre niilista, melancólica, psicológica. A dos estúdios, pelo menos, arrisca o épico. E muito lamento a ausência de Coppola, Kubrick, Fellini e Resnais.
Assisti a bons trabalhos de cineastas iranianos, espanhóis, iugoslavos, mas, aos poucos, fui me afastando do circuito dos festivais. Por isso, vi com um ano de atraso Azul É a Cor Mais Quente.
Não me atraía a temática; a promessa de sexo explícito tampouco me seduzia. O medíocre 9 Canções é a prova de que o despudor dos atores não garante a inspiração. E assim, meio a contragosto, eu me rendi ao tunisino Abdellatif Kechiche.
Em vez de uma ode à liberdade sexual, o filme fala da dor de amadurecer, de aprender a ser quem se é. A protagonista Adèle — a também Adèle Exarchopoulos — vive em estado de susto e estupor. É um filme refinado, sem nenhuma presepada de câmera ou cortes metidos a espertos.
O roteiro escapa das armadilhas da cartilha de ficção.
A predileção da moça por meninas não se explica por outra razão que não a de ser uma característica intrínseca dela. Papai e mamãe não são culpados, nem as más influências.
Qualquer filme americano, independente ou não do mercado, se refestelaria no bullying e na falta de diálogo com a família. Kechiche, não. O diretor se vale de elipses de tempo, só percebidas depois de passadas, para narrar o que interessa:
a educação sentimental de Adèle.
As aulas de literatura que permeiam a narrativa deixam clara a mensagem. Elas falam de Antígona, do vício inerente à natureza, do desejo e da fatalidade. A amante cita Sartre, para quem o homem é nada até fazer algo de si mesmo.
As longas cenas de sexo, apesar de precisas na sofreguidão, não representam a razão de ser do enredo. O estupro emocional da heroína é o que conduz a tragédia. Mesmo quando está feliz, os olhos de Exarchopoulos transmitem medo.
As atuações beiram o documental. Kechiche é adepto da imolação artística. Não à toa, atriz e personagem têm o mesmo nome. Exarchopoulos enfrentou um noviciado no processo de filmagem. Está lá, impresso no pavor do semblante sexy e dentuço da jovem.
A cantora Björk jurou nunca mais atuar depois da experiência com Lars von Trier. Assim como Kechiche, Von Trier se nega a registrar o faz de conta. A experiência do ator deve se confundir com a do papel para criar uma emoção digna de ser eternizada.
Ponderei se deveria venerar Exarchopoulos, como a Liv Ullmann, ou sentir pena dela. Algo a difere da sueca. É como se ainda não houvesse consciência na francesa, como se ela fosse o mesmo que a personagem. Kechiche revela-se um diretor mais brutal que Bergman.
O filme tem uma obviedade imperdoável. O fato de a moça aprender a comer ostras na casa da namorada.
Mas o que mais choca em Azul não é o método, as línguas ou lágrimas. O que me deixou boquiaberta foi o nível das aulas de literatura dos meninos do fundamental II de um lycée da periferia de Lille.