A Primeira Missa
No aniversário da filha de um casal de amigos, Luiz Zerbini me mostrou o primeiro exemplar da revista Jacaranda, com um quadro dele estampado na capa. Era uma tela que eu o vi pintar no ateliê, de um palco sobre palafitas no mar da Bahia, e que não cheguei a ver terminada. Perguntei quem a […]

No aniversário da filha de um casal de amigos, Luiz Zerbini me mostrou o primeiro exemplar da revista Jacaranda, com um quadro dele estampado na capa. Era uma tela que eu o vi pintar no ateliê, de um palco sobre palafitas no mar da Bahia, e que não cheguei a ver terminada.
Perguntei quem a havia arrematado, e ele me explicou que a pintura estava em negociação com uma instituição francesa. A França se interessara por A Primeira Missa — uma releitura que Zerbini fez do quadro de Victor Meirelles para a exposição Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em 2014 —, mas Luiz preferia que esta permanecesse no Brasil.
Guel Arraes, também presente, comentou que Meirelles havia se baseado em outro quadro, o da primeira missa na Argélia — país que conheceu durante o exílio de seu pai, Miguel Arraes —, para formatar sua visão solene do desembarque de Pedro Álvares Cabral.
Procurei a versão argelina na internet, porém não encontrei nenhuma imagem. A composição das figuras seria a mesma, mas os tuaregues teriam sido substituídos pelos silvícolas e o deserto, pela floresta.
A vinda da corte para o Brasil criou a urgência de dar um sentido histórico, de fundação, à ex-colônia. Artistas e cientistas foram trazidos para cá com o intuito de narrar e documentar o paraíso perdido.
Segundo Guel, só então a carta de Pero Vaz de Caminha, um dos tantos documentos sobre o descobrimento perdidos na Torre de Belém, em Lisboa, teria sido resgatada dos arquivos, para ganhar a importância simbólica que tem hoje.
Zerbini observou que, assim como o relato de Caminha, o maior registro já feito dos costumes do cotidiano do Brasil Colônia permaneceu incógnito, até ser salvo do esquecimento pelo colecionador Raymundo Castro Maya. Ele se referia aos desenhos e às aquarelas de Jean-Baptiste Debret, que podem ser vistos até este domingo (3) na exposição O Rio de Janeiro de Debret, no Centro Cultural Correios.
Documento inestimável, as pouco mais de 500 representações foram concebidas nas horas vagas do artista francês. Contratado para pintar a família real, Debret passou quinze anos no Brasil e desenhou, para si mesmo, o dia a dia das ruas. Quando voltou, carregou consigo os croquis extraoficiais.
A coleção permaneceu com os herdeiros até 1939, quando Castro Maya adquiriu o lote de uma sobrinha-neta do artista e organizou a primeira mostra dos originais, no Museu Nacional de Belas Artes, intitulada A Missão Artística Francesa.
O Brasil cuida mal da própria história. Botamos abaixo o Palácio Monroe, limamos o Morro do Castelo, destruímos São Cristóvão com aquele pavilhão e, depois, sepultamos tudo com viadutos horrendos.
A recuperação da carta de Caminha e das aquarelas de Debret, dois testemunhos notáveis da nossa existência, me fez desejar que A Primeira Missa do Zerbini ficasse mesmo por aqui, nas mãos de uma instituição que a faça dialogar com outros vestígios frágeis da Terra Brasilis.