Sobre arte popular, apagamentos, projetos culturais e pontes artísticas
O Uaná Etê, um parque cultural na região do Vale do Café, no estado do Rio, recebe obras da paulista Con Silva
Em 2019, visitei pela primeira vez a reserva técnica do finado Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil (Mian), no Cosme Velho, Zona Sul do Rio. Esta visita surpreendente e inspiradora resultou na montagem da exposição-manifesto “Arte Naïf – Nenhum museu a menos”, com record de visitação no Parque Lage e curadoria de Ulisses Carrilho. Desde então, tenho vivido uma aproximação de caráter imersivo com essa vertente marcada pela produção de artistas autodidatas, sem educação formal em artes plásticas e, por isso, negligenciados.
Já li que o termo “arte naïf” foi adotado pela primeira vez como uma crítica negativa à obra do francês Henri Rousseau (1844–1910), que iniciou sua produção aos 40 anos quando chegou a ser rotulado de grotesco devido à falta de adequação às tradições artísticas. Em contrapartida, Pablo Picasso (1881–1973) e Robert Delaunay (1885–1941) validaram o seu trabalho.
Sou entusiasta do gênero, me encantam a poética e a força plástica desses artistas que retratam seus cotidianos, tradições e territórios. Suas trajetórias desviantes da norma muitas vezes evidenciam violências impostas pelos padrões da colonialidade. Temos entre nós nomes incontornáveis como Djanira e Heitor dos Prazeres, ambos rotulados pela crítica especializada como primitivos ou naïf.
São muitos os apagamentos na história da arte e, nos últimos anos, assistimos a um processo de revisão e legitimação da arte popular brasileira, colecionada e exposta no circuito institucional interno e do exterior. No momento, está presente na 60ª Bienal de Veneza, fortemente representada pela obra de Amadeo Luciano Lorenzato (1900-1995), entre outros.
Em 2023, o pintor mineiro Odeteres Ricardo de Ozias (1940-2011), que chegou a trabalhar como pedreiro, foi tema de individual em Londres. A também mineira Maria Auxiliadora (1935-1974) foi outra autodidata a conquistar o mercado internacional.
Desde o ano passado, o projeto Arte nas Estações exibe parte da coleção do Mian em mostras temáticas itinerantes por regiões fora do eixo Rio-São Paulo. Agora, em 2024, levaremos o acervo para Mato Grosso do Sul. É, sem dúvida, uma forma colaborativa de gerarmos visibilidade para a obra e o percurso desses artistas que de ingênuos nada têm.
Em meio a esse processo de pesquisa, conheci o trabalho da paulista Conceição Aparecida da Silva (Batatais/SP, 1966), a Con Silva, artista autodidata de carreira já consolidada há pouco mais de uma década. Venho acompanhando de perto sua produção e suas narrativas originais de forte apelo cromático.
Vai daí que…
Visitei recentemente um projeto bem curioso localizado no distrito de Sacra Família, na região do Vale do Café, estado do Rio. O Uaná Etê é um parque com 135 mil metros quadrados, um oásis cultural a pouco mais de duas horas do centro da capital fluminense, formado por seis jardins temáticos. Com imensa diversidade de espécies da flora (e da fauna), o lugar criado em meio à Mata Atlântica pelo casal de músicos Cristina Braga e Ricardo Medeiros tem vistas que convidam à contemplação: parece haver uma suspensão do tempo por lá.
Além dos atrativos naturais, o Uaná Etê reúne algumas instalações artísticas a céu aberto. São esculturas e obras interativas, muitas relacionadas à música. Dada a minha trajetória de colecionador e gestor cultural, fui convidado pelo casal a curar duas intervenções que marcam o “Jardim dos Mistérios”, a ser inaugurado nesse dia 30 de junho. O novo espaço, que passa a integrar o parque aberto ao público, dialoga com lendas indígenas e evoca personagens do folclore brasileiro relacionadas à proteção da natureza.
Esta temática me remeteu de imediato ao imaginário da Con, cuja poética explora temas como a natureza, o folclore e as lendas. Durante uma semana, ela se hospedou no local (que tem chalés em meio aos jardins) e realizou uma pintura mural e uma intervenção pictórica na escultura do Boitatá, uma cobra de 42 metros construída por Joel Mello, artesão também autodidata, do Vale do Café. Acompanhei todo o processo, que resultou em obras lúdicas e vibrantes dedicadas em especial ao público infantil. É um trabalho que resgata o imaginário popular expresso em nossa cultura tão rica e diversa.
Conectar artistas a novos espaços expositivos, fortalecer a cena cultural e criar pontes entre múltiplas correntes artísticas é, definitivamente, das coisas que mais me movem nessa vida. Fica aqui o convite para que todos visitem o Uaná Etê.