Por que o check-up cardiológico precisa mudar?
Doenças cardíacas são a principal causa de morte no mundo, com metade dos casos se manifestando diretamente como morte súbita.

As doenças cardiovasculares são a causa número um de morte no mundo. E em aproximadamente 50% dos casos, o primeiro sintoma da doença cardíaca é a morte súbita. Ou seja, milhares de pessoas morrem sem nunca terem sentido dor no peito, falta de ar ou qualquer sinal de alerta. Muitas delas, inclusive, haviam passado recentemente por check-ups considerados normais.
Esses dados levantam uma reflexão inevitável: será que estamos avaliando o risco cardiovascular da maneira correta? Embora os exames tradicionais, como eletrocardiograma, ecocardiograma, teste ergométrico e análises laboratoriais, tenham um papel importante, especialistas vêm questionando sua eficácia quando utilizados isoladamente, especialmente em pacientes assintomáticos com risco oculto.É importante reforçar que o check-up convencional não deve ser descartado. Ele continua sendo relevante na identificação de fatores clássicos de risco cardiovascular, como hipertensão arterial sistêmica, dislipidemias e distúrbios glicêmicos. No entanto, cresce entre especialistas a percepção de que, quando realizado isoladamente, esse modelo pode não ser suficiente para detectar formas iniciais da aterosclerose. Trata-se da chamada aterosclerose subclínica, caracterizada pela presença de placas de gordura nas artérias coronárias que ainda não provocam sintomas clínicos, mas que podem se romper de maneira súbita, desencadeando a formação de trombos, obstrução aguda do fluxo sanguíneo e eventos cardiovasculares graves, como o infarto agudo do miocárdio ou a morte súbita, inclusive em adultos jovens e previamente assintomáticos.
Para aprofundar esse tema com seriedade e base científica, convidei o cardiologista Dr. Fernando Bassan, PhD em Ciências Médicas pela UERJ e cardiologista do Instituto Nacional de Cardiologia para discutir por que o modelo atual de check-up cardiovascular precisa evoluir e como a cardiologia preventiva pode mudar o destino de milhares de pessoas antes que o primeiro sintoma seja o último.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Qual é, na sua visão, o principal problema do check-up cardiológico atual?
Dr. Fernando Bassan: O check-up convencional, como ele é feito hoje, ainda tem valor ao identificar fatores de risco como hipertensão, colesterol elevado e glicemia alterada. Mas isso se torna insuficiente quando falamos da população entre 30 e 50 anos. Nessa faixa etária, os exames mais comuns geralmente vêm normais. O paciente sai da consulta achando que está tudo bem. No entanto, ele pode ter uma placa de gordura instável em uma artéria do coração, silenciosa, que não obstrui e não causa sintomas, mas que pode se romper a qualquer momento e causar um infarto.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Ou seja, alguém pode infartar mesmo tendo feito todos os exames e sem nenhum sinal clínico?
Dr. Fernando Bassan: Exatamente. E esse é o ponto mais importante. Imagine a espessura da carga de uma caneta. Essa é a medida aproximada de uma artéria coronária. Uma placa pequena pode se romper e, ao tentar cicatrizar, o corpo forma um coágulo que entope completamente a artéria. É um processo que acontece em segundos ou minutos. Por isso ouvimos com frequência relatos de pessoas que infartaram “do nada”. Estudos mostram que 65% dos infartos ocorrem em placas pequenas, que não causavam obstrução e não apareciam nos exames tradicionais.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Essas pessoas então não estavam saudáveis. Elas só não sabiam que estavam em risco?
Dr. Fernando Bassan: Correto. O conceito de “não tinha nada” precisa ser revisto. Em 75% dos casos, se o paciente tivesse feito apenas o check-up tradicional, os exames não mostrariam nada de anormal. Isso evidencia o quanto ainda estamos despreparados para prever e prevenir infartos de forma eficaz.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais avanços recentes você considera mais promissores para reverter esse cenário?
Dr. Fernando Bassan: Dois avanços se destacam. O primeiro é a angiotomografia coronariana. Trata-se de um exame simples, não invasivo e rápido, que permite visualizar diretamente as artérias do coração e identificar placas, mesmo as menores. Até pouco tempo atrás, isso só era possível por meio de cateterismo. O segundo é o exame de Lipoproteína(a), uma partícula de gordura que tem forte componente genético e pouco se altera com dieta ou estilo de vida. Pessoas com níveis elevados têm risco cardiovascular aumentado, mesmo quando todos os outros exames parecem normais.
Dr. Fabiano M. Serfaty: E como essa informação pode mudar a conduta do paciente e do médico?
Dr. Fernando Bassan: Essa é a essência da prevenção. Saber que se tem um risco elevado muda o comportamento. As pessoas passam a cuidar mais da alimentação, se exercitar com mais regularidade, manter o peso saudável e abandonar o cigarro. Além disso, já temos medicamentos extremamente eficazes que estabilizam ou até promovem regressão das placas. Não faz sentido esperar que uma placa se rompa aos 60 anos, se podemos identificá-la e tratá-la aos 40. É como o Titanic: em 1912, ele afundou porque não viu o iceberg a tempo. Hoje, com tecnologia, o comandante mudaria a rota. A cardiologia preventiva precisa ser esse radar moderno.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Você acredita que a medicina ainda atua de forma reativa em vez de preventiva?
Dr. Fernando Bassan: Infelizmente, sim. A maioria dos infartos não acontece por falta de conhecimento técnico, mas por falta de ação precoce. Já temos as ferramentas, a tecnologia e a ciência. O que falta é mudar a mentalidade, ou seja, sair do modelo de combate ao problema e passar a evitá-lo antes mesmo que ele comece.
Referencias:
Coronary Atherosclerotic Precursors of Acute Coronary Syndromes. J Am Coll Cardiol. 2018 Jun 5;71(22):2511-2522.
Effects of Combining Coronary Calcium Score With Treatment on Plaque Progression in Familial Coronary Artery Disease: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 2025;333(16):1403–1412.
Filling the Evidence Gaps Toward a Coronary Artery Calcium-Guided Primary Prevention Strategy. JAMA Cardiol. 2025;10(5):411–413
Preventing myocardial infarction in the young adult in the first place: how do the National Cholesterol Education Panel III guidelines perform? J Am Coll Cardiol. 2003 May 7;41(9):1475-9.