Menor taxa de mortalidade materna no Brasil em 22 anos
Índice em 2022 foi de 54,5 óbitos a cada cem mil nascidos vivos, depois de atingir 117,4 por cem mil em 2021, durante a pandemia
A taxa de mortalidade materna no Brasil em 2022 foi a menor registrada em toda a série histórica, caindo para 54,5 óbitos a cada cem mil nascidos vivos. Essa importante redução se torna mais impactante já que foi foi registrada após o período mais crítico da pandemia, quando a taxa chegou a 117,4 por cem mil em 2021. A melhora reflete o esforço conjunto de diversas esferas da saúde pública que foram coordenadas pela gestão do Dr. Raphael Câmara, médico ginecologista e obstetra, que trabalhou como Secretário Nacional de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, a pasta que cuida da saúde materno-infantil, cargo que ocupou durante esse período crucial de 2020 a 2022. Os dados, obtidos pelo Observatório da Saúde da Umane a partir do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do DataSUS. Também destacam as disparidades regionais. Estados como Santa Catarina e Distrito Federal apresentaram as menores taxas, enquanto regiões como o Norte e Nordeste continuam a enfrentar desafios consideráveis. Para discutir as estratégias que levaram a essa redução histórica e os desafios que ainda persistem, converso com o Dr. Raphael Câmara, conselheiro federal reeeleito pelo Rio de Janeiro do Conselho Federal de Medicina para o período de 2024-2029, e responsável por importantes iniciativas durante sua gestão no Ministério da Saúde que revolucionaram a saúde materno-infantil e levaram à essa histórica redução das mortalidades materna e infantil, que também atingiu os menores patamares da série histórica.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Os dados mais recentes mostram uma redução significativa na taxa de mortalidade materna em 2022, marcando o menor índice da história. Sabemos que essa conquista está fortemente ligada às ações implementadas durante sua gestão como Secretário Nacional de Atenção Primária do Ministério da Saúde. Quais foram as principais estratégias e iniciativas adotadas por você e sua equipe que resultaram nessa redução tão expressiva?
Dr. Raphael Câmara: Primeiro, trazer os melhores quadros técnicos independentemente de ideologia ou partidos. Trouxemos diversos médicos obstetras com experiência em saúde materno-infantil. Três diretores obstetras. O Braga, com 4 pós-doutorados, sendo um no Imperial College e outro em Harvard, e a Lana, com mestrado e professora da Universidade Federal do Amazonas. Trouxe a questão para meu gabinete e ao do ministro. Historicamente, a coordenação da saúde da mulher é do baixo escalão do Ministério da Saúde, sem contato com quem comanda os recursos. Com isso, eu destinei recursos financeiros como nunca houve. Já de cara, fiz duas portarias com uma dando um bilhão de reais para pré-natal e outra de 500 milhões de reais para equipar todas as maternidades públicas do país. Logo depois, mudei a política de saúde materno-infantil. dobrando o orçamento para cuidar de mães e bebês, criando a Rami (Rede de Atenção Materno-infantil), passando de 900 milhões para 1.8 bilhão de reais por ano. E acabei com a Rede Cegonha, que colocava em risco mães e bebês por privilegiar parto inseguro sem obstetras e que estimulava o parto vaginal mesmo quando a cesariana era indicada. Acabei com o estímulo ao aborto. Criei o Cuida Mais, que colocava pediatras e obstetras na atenção primária dando o mesmo direito às mulheres e crianças pobres que as ricas sempre tiveram. Lamentavelmente, todas essas minhas ações foram revogadas pelo atual governo, o que muito provavelmente se traduzirá em aumento da mortalidade materna já nas taxas de 2023. Tudo isso com o total apoio dos ministros Pazuello e Queiroga, e do presidente Bolsonaro. Sem eles, teria sido impossível. Isso mostra a importância que tem o gestor máximo para a diminuição da mortalidade materna.
Dr. Fabiano M. Serfaty: A mortalidade materna é um importante indicador de saúde pública e, ao conseguir essa redução, os impactos são vastos, indo além das gestantes e seus filhos. Quais são os benefícios dessa conquista para a saúde da população como um todo, tanto do ponto de vista da economia em saúde quanto da melhoria nos indicadores sociais?
Dr. Raphael Câmara: A taxa de mortalidade materna é o melhor indicador de saúde de desenvolvimento de um país. Como exemplo, países como a Coreia do Sul têm taxas próximas a zero. Tenho certeza de que minha equipe, com mais uma gestão, chegaria próximo disso. Mães e bebês saudáveis se traduzem em um país de pessoas saudáveis e com alta expectativa de vida. E a cadeia de melhorias na saúde materno-infantil se traduzem em todos os outros indicadores de saúde. Estudos de epigenética mostram que uma gravidez com doenças se traduz em bebês que se tornarão adultos com mais doenças, como a obesidade, por exemplo.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Apesar dessa conquista, vemos que regiões como o Norte e o Nordeste ainda enfrentam taxas alarmantes de mortalidade materna. Quais são os principais fatores que contribuem para essa disparidade regional e como as políticas públicas podem ser adaptadas para enfrentar as particularidades dessas áreas de forma eficaz?
Dr. Raphael Câmara: Importante dizer que obtivemos reduções em todos os estados dessas regiões. Mas como a estrutura de saúde de alguns desses estados é deficiente, isso se traduz numa mortalidade materna alta. Não há outra forma que não seja gestão qualificada e recursos financeiros para melhorar. Mas temos diversos bons exemplos, como Pernambuco, que tem uma das menores taxas do país. Por outro lado, Roraima é a maior. E, não por acaso, a maternidade de lá é chamada de “maternidade de lata”, por ser uma estrutura provisória. O Rio de Janeiro também tem uma das maiores mortalidades do país. Historicamente, a saúde no Rio foi tratada com desprezo e pessoas não técnicas, vide secretários presos por corrupção.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Outro dado preocupante é o que se refere à desigualdade racial. Que medidas estão sendo ou podem ser adotadas para garantir que essas mulheres recebam cuidados de saúde adequados e equitativos em todo o Brasil?
Dr. Raphael Câmara: Historicamente, a população negra tem os menores índices sócio-econômicos. E isso se traduz em menores níveis de saúde e de acesso a locais de excelência no atendimento. O que explica as maiores taxas de mortalidade é o nível sócio-econômico. Não há outra forma que não seja ter um cuidado especial com as mais pobres enquanto o Brasil não se tornar um país menos desigual.
Dr. Fabiano M. Serfaty: A redução da mortalidade materna está diretamente ligada à prevenção de complicações gestacionais e pós-parto. Sabemos que entre 75% e 90% dessas mortes podem ser evitadas com intervenções adequadas. Que tipo de treinamentos, tecnologias e inovações foram priorizados na sua gestão para garantir que essas complicações sejam identificadas e tratadas de forma precoce, evitando desfechos fatais?
Dr. Raphael Câmara: Esse foi nosso principal foco. Refizemos do zero, com grupos de técnicos de excelência, todos os manuais e treinamentos para parto e pré-natal juntamente com as sociedades de especialidades. Rodamos o Brasil todo levando esses conhecimentos. Lançamos o novo guia para aborto preconizando atendimento acolhedor, e não indicando acima de 22 semanas. Treinamos as equipes das maternidades a saberem lidar com emergências partir do programa Mortalidade Materna Zero. Instituímos o Previne com início precoce do pré-natal com melhor estratificação de risco obstétrico. Oficinas diárias com todos os estados do Brasil discutindo os casos de gravidade clínica internados nas maternidades. Reativação do Comitê Nacional de Prevenção e Controle da Mortalidade Materna. Convênio com o IFF/Fiocruz para qualificação dos comitês de mortalidade materna, aprimoramento da atenção pré-natal e foco na prevenção das causas de morte materna mais importantes no pais: hipertensão, hemorragia e infecção. Atualização do Manual de Gestação de Alto Risco (que era de 2012) e foi atualizado após 10 anos. Nesse manual, por exemplo, introduziu-se no MS a profilaxia contra a pré-eclâmpsia nos casos indicados com aspirina. Entrega da caderneta da gestante, um importante instrumento de registro pré-natal. Até hoje, o governo novo não entregou a caderneta da gestante pois suspendeu a que fizemos e não entregou uma nova caderneta da gestante.
Dentre muitas outras iniciativas. E o resultado veio de forma muito rápida após termos recebido uma saúde materno-infantil destruída pelos governos anteriores que se traduziu na enorme mortalidade materna da pandemia. Tivemos que trocar o pneu com o carro andando. Conseguimos passar em um único ano da maior taxa de mortalidade materna da história para a menor. Isso é épico, herpico. Por questões ideológicas esse resultado que é épico, heroico, praticamente não foi noticiado. Quem perde com isso são as mães e os bebês.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Um dos grandes desafios enfrentados por qualquer sistema de saúde é garantir a equidade no acesso a serviços de qualidade. Estados como Santa Catarina e Distrito Federal conseguiram alcançar taxas de mortalidade materna significativamente baixas. Na sua opinião, que práticas e políticas dessas regiões poderiam ser replicadas nas áreas mais críticas do Brasil para garantir uma melhoria uniforme?
Dr. Raphael Câmara: Como eu já disse, são estados ricos com saúde mais estruturada e acesso a melhores profissionais. Além disso, a população tem maior nível sócio-econômico e menos morbidades como anemia, por exemplo, que não tratada é causa de mortalidade materna. É preciso corrigir essas desigualdades urgentemente.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Considerando a crescente relevância da telemedicina e das novas tecnologias em saúde, como essas ferramentas podem contribuir para reduzir ainda mais as taxas de mortalidade materna em regiões onde o acesso a profissionais de saúde especializados é limitado?
Dr. Raphael Câmara: Nós lançamos a política de telemedicina na atenção primária e na obstetrícia. Criamos a TeleUti obstétrica que orientava obstetras de todo o Brasil a lidarem com pacientes graves. Informatizamos todas as unidades básicas de saúde do Brasil. Todas essas ações também foram responsáveis por esse resultado.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Finalmente, Dr. Raphael, sabemos que a meta final é atingir uma taxa de mortalidade materna próxima de zero, algo que muitos países de alta renda já conseguiram manter por anos. Quais são os próximos passos e metas do Conselho Federal de Medicina e do sistema de saúde brasileiro para continuar essa trajetória de redução, especialmente em termos de equidade e acesso? Como sua liderança no CFM pode colaborar para acelerar esse processo?
Dr. Raphael Câmara: Lamentavelmente, a taxa de mortalidade materna é totalmente dependente do gestor central, federal. Os municípios em sua maioria são pobres. Se não houver recurso federal não há solução e há necessidade de técnicos qualificados. O atual governo demitiu nossos técnicos, destruiu nossas políticas e diminuiu recursos. Então não vejo solução. O CFM vai fazer sua missão que é cobrar, publicizar e mostrar os caminhos corretos. Espero que nos ouçam. A vida de mães e bebês não pode depender de ideologia e política, mas sim de gestão comprometida em os salvar. É o futuro do nosso Brasil na defesa das duas vidas desde a concepção.