Arquibancada é carnaval. Soltamos o gogó, a alma, as máscaras. Transbordamos excitações represadas por diques sociais e psicológicos. Guerreamos sem guerra. Um “processo civilizador” orquestrado pelo esporte moderno, observam os sociólogos Norbert Elias e Eric Dunning.
Como nos ritos carnavalescos, a arquibancada sacode convenções, hierarquias, papéis. Uma fresta para sopros primais e poeiras do inconsciente. Por ela também passam discriminações congênitas. Barrá-las revela-se tão difícil quanto necessário.
O primeiro passo é não confundir a essência carnavalesca da arquibancada – aquarela mimética do país – com uma concessão a ofensas como o suposto grito racista dirigido a Gabriel no Fla-Flu.
(Só a perícia pode confirmar.)
Polemizado nas redes, o episódio não confisca o mérito da vitória tricolor. Tampouco sabota as resenhas sobre a partida, sobre a gangorra de heróis e vilões, o duelo tático. Nem por isso o xingamento dispensa uma abordagem eloquente, compatível à perversidade criminosa do racismo.
Descontados fundamentalismos e precipitações, reconhecer a gravidade de casos assim espana o pó da condescendência. Confronta blindagens adensadas por nossa gênese sociocultural – escravocrata, patriarcal, patrimonialista. Traços que se dissimulam no mito da cordialidade, e naturalizam preconceitos, dominações, agressões.
O futebol reproduz alguns desses traços. Replica, por exemplo, um machismo crônico. Jogo “de homem”, “pra homem”, repetem pais, técnicos, atletas, torcedores. Nada de choro, de cai-cai, de frescura. Desvios da masculinidade hegemônica.
A cartilha sistematiza ataques contra homossexuais, mulheres – inclusive profissionais da área – e jogadores fora do código dominante. Não à toa as quedas de Neymar na Copa da Rússia despertaram um tsunami de reprovações e memes debochados.
As críticas expressavam decepção além da esportiva. Os tombos do craque haviam transgredido o padrão masculino que o futebol ajuda a sedimentar, e que municia zoações entre torcedores no bar, na praia, no escritório, no estádio.
Alternadas com naturalidade, chacotas homofóbicas dificilmente são percebidas como insulto, muito menos crime, no universo boleiro. Liturgias futebolísticas historicamente as avalizam.
Chancela equivalente recebem outras expressões discriminatórias, como se cultura do futebol e o carnaval da arquibancada as anistiasse. Precisamos desfazer a confusão.
Mesmo envernizadas de jocosidade, ofensas racistas, homofóbicas, machistas, xenófobas, religiosas são inadmissíveis, injustificáveis, em quaisquer ambientes e circunstâncias. Constituem atitudes criminosas assinaladas nos arcabouços legais de todos os países democráticos.
Paixões, emoções, compulsões esportivas não as absolvem. Atletas, treinadores, dirigentes, investidores, torcedores não deveriam mais relevá-las. Pelo contrário, haveriam de reforçar o combate às discriminações estruturais.
O amadurecimento da arquibancada integra esses esforços, aos quais se somam agentes jurídicos, como o Ministério Público e os tribunais setorizados; administrativos, como gestores de federações, clubes, estádios, arenas; e econômicos, como consumidores e patrocinadores cada vez mais ligados a compromissos socioambientais.
Os avanços dependem de um inegociável rigor de fiscalização, investigação, punição. Exigem penalidades esportivas e financeiras mais severas do que suspensões e multas paliativas. Não menos importante, sabemos, é o investimento em educação.
Essa responsabilidade coletiva não engessa a arquibancada. Não esfria seu pulso dionisíaco, sua irreverência, seus rituais indispensáveis à formação e à alegria do torcedor.
Sem desidratar tais ingredientes, a responsabilidade estanca a naturalização de injúrias supremacistas. Muitas se refugiam numa aparência despretensiosa, mas acabam em barbáries como a execução de Moïse Kabagambe e de outros tantos invisíveis, tantos descartáveis condenados pela indústria da exclusão.
O linchamento emite sinais idênticos ao do boicote às vacinas. Indica uma banalização da vida, uma profunda crise moral, uma epidemia de indiferença inoculada na superexposição contemporânea. Derivam da complacência e da omissão com preconceitos e desigualdades.
O meio esportivo tem o dever de enfrentá-las. De descartar as pílulas vermelhas e o conforto de realidades paralelas. De congregar diferenças, para virar o jogo.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva.