Esquinas do Esporte

Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Uma redentora ilha de despretensão no boteco do Grajaú

Irreverência das provocações entre torcedores na largada do Brasileiro lembra como é preciso descalçar as opiniões prepotentes, herméticas, asfixiantes

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Atualizado em 18 abr 2024, 11h28 - Publicado em 18 abr 2024, 11h13
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  • A peleja salga o domingo vadio num boteco do Grajaú. Ninguém resiste ao repente de pitacos. Pouco importa se a TV espreguiça meramente a largada do interminável Brasileiro. A resenha segue tão sagrada quanto o chope suado, o ovo rosa, o pôster do time do peito abraçado à folhinha caduca e à imagem de São Jorge.

    Bebuns e doutores, estatísticos e curiosos, poetas e matemáticos, gaiatos e comportados, todo mundo aglutina-se sob a força centrípeta da cornetada. Até lulistas e bolsonaristas irmanam-se na resenha. Qualquer dia o Conselho de Segurança da ONU haverá de receitá-la.

    Os espinhos e as pressas se dissipam na prosa transversal mediada pelo futebol. Estaríamos falidos sem frestas assim, onde damos folga ao Coelho da Alice em que nos transformamos no cotidiano sequestrado pelas telas. Ali aplacamos a contradição entre a hiperconectividade digital e a indiferença.

    “Pênalti. Claríssimo. Parecia MMA”, avaliza o rubro-negro.

    “Lá vem o VAR se intrometer. Choque normal. Começou a robalheira”, provoca o tricolor.

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    “O Flamengo não precisa de ajuda do juiz”, dispara o sujeito que bebericava na calçada.

    “Então por que não engrena?”, retruca o alvinegro no balcão.

    “É questão de tempo. Anota aí: já ganhamos o Carioca, vamos ganhar também o Brasileiro e a Libertadores”, intromete-se o garçom boa-praça, de otimismo e lábia incontroláveis.

    “Vai sonhando… Esse ano é do Vascão”, rebate o corneteiro ao fundo, movido menos pela confiança do que pela galhofa.

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    O alvinegro zombador não deixa barato: “Que nada. O Botafogo vai à forra desta vez. Será o contrário do campeonato passado: vamos crescer na reta final”.

    “Calma, galera: não subestimem o campeão da América”, retruca, quase por obrigação, o tricolor. Não daria bandeira quanto à ansiedade em ver um aceno da equipe encantadora de 2023.

    Os risos e as zoações quase abafam o gol. Acabaria ofuscado pela polêmica do pênalti. O papo seguiria irremediavelmente aquecido.

    Ali os juízos brincam de pique, descalçam a prepotência. Não caminham impermeáveis ao outro e ao bom humor. Não carregam o punho cerrado das redes, e sim a despretensão de uma ciranda infantil, de um dominó na praça.

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    Ali teorias conspiratórias e incontinências verbais não se prolongam além da conta. Jamais adquirem densidade superior à espuma dos copos. Vão-se com o vento que nos devolve aos asfaltos do dia a dia.

    Como é bom encontrarmos refúgios à epidemia das opiniões herméticas, arrogantes, avessas à pluralidade e à leveza. Alastram-se com a gula de uma nuvem tóxica.

    Enquanto os porões da intransigência nos asfixiam, enquanto as certezas irredutíveis pesam a alma, a irreverência boleira reconforta. Forma uma ilha habitada pela despretensão.

    Dela não se espera a cura das vaidades e desumanidades, tampouco uma verdade científica ou  filosófica. Nela vivemos o regaço da despretensão, onde marotamente culpamos o juiz e o treinador, onde implicamos com o adversário por esporte, não por força do ego.

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    Um regaço onde fabricamos santos e demônios instantâneos, efêmeros, onde jogamos xadrez com os deuses da bola. Um precioso regaço onde deliramos por alguma fenda no tempo, esgrimamos algumas bobagens, e vamos embora com a bênção da saideira.

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    Craques cinematográficos   

    Por falar em cultura boleira, larga na próxima quinta o 14º Cinefoot. Criado e organizado pelo cineasta Antonio Leal, o festival reúne, entre os dias 25 e 30 deste mês, 51 filmes alusivos ao universo do futebol. Produções nacionais e internacionais ganham as salas do Estação Net Rio e do Estação Botafogo, no bairro homônimo; do Centro Cultural da Justiça Federal, no Centro; e do Cine Teatro Eduardo Coutinho Biblioteca Parque de Manguinhos. Os ingressos (gratuitos) e a programação completa estão disponíveis em cinefoot.org.

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    Ao repertório cinematográfico, desdobrado no canal do Cinefoot no YouTube, somam-se uma oficina audiovisual e uma masterclass com o documentarista Pedro Asbeg, diretor de “Democracia em preto e branco” e “O Ninho: futebol e tragédia”. O cardápio inclui também mesas-redondas sobre temas como racismo e futebol feminino.

    Uma delas é dedicada ao holandês Johan Cruyff (1947-2016), regente do icônico Carrossel de 1974. Bambas do esporte e da comunicação, como o jornalista e professor da PUC-Rio Mauro Silveira, discutem o legado de Cruyff, dia 28, antes da exibição de “A última partida”, de Jordi Marcos, às 18h, no Estação Net Rio.

    Outros craques homenageados, igualmente eternos, são o argentino Horácio Narciso Doval (1944-1991), ídolo de rubro-negros e tricolores, Roberto Dinamite e Júnior. Doval e Júnior inspiram, respectivamente, os filmes de abertura e encerramento: “Doval: o gringo mais carioca do futebol”, de Sérgio Rossini e Federico Bardini, dia 25, às 20h30, no Estação Net Botafogo; e “A turma do Maestro Junior”, de Daniel Furiati Sroulevich, dia 30, às 20h30, no Estação Net Rio.

    Dinamite (1954-2023) é reverenciado dia 26, às 20h30, no Estação Net Rio, com as exibições de “Camisas Negras: uma jornada história”, coordenado por Thais Vieira; de “A força do Gigante”, dirigido por Marco Antonio Rocha; e do vídeo-homenagem feito pelo Museu da Pelada. Sob a batuta do jornalista, empresário e peladeiro Sérgio Pugliese, o Museu ainda inaugura, no Cinefoot, um troféu destinado a premiar a rima entre memória e irreverência. Golaço.

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    Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação FísicaOrganizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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