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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Um buquê de afetos para inspirar o combate ao preconceito

História das corredoras Carol e Iara opõe-se ao gerúndio dos avanços inadiáveis para estancar discriminações como o racismo cumulativo sobre Vini Jr.

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Atualizado em 25 Maio 2023, 19h04 - Publicado em 25 Maio 2023, 08h01

Carol e Iara são desses amores unidos pelo esporte. A corrida as aproximou, e o destino fez o resto. Noivaram aos pés do Cristo, em 2021, trégua da pandemia, no reencontro com as competições. Casaram-se um ano depois, em plena Maratona do Rio, com transmissão da tevê aberta. Tudo arquitetado na encolha por Iara.

“Nem desconfiei, só soube na hora”, recorda Carol. “Eu era embaixadora da maratona, andava bem ocupada. Quando me dei conta, estava casando ali, ao vivo para o país. Uma loucura”.

“Ela achou que o palco fazia parte da prova”, diverte-se Iara. “Um amigo levou as alianças, e no fim deu muito certo”, orgulha-se.

Nascida em Belo Horizonte, crescida em Ipatinga, alma carioca, a fisioterapeuta Iara Perdigão é assim, craque em surpresas afetuosas. Quando viajaram para competir em Buenos Aires, ano passado, improvisou um buquê com flores do prédio onde se hospedavam.

“Não teve outro jeito. Não consegui comprar, então apelei para o jardim do edifício. Foi por uma boa causa”, brinca.

“Era um buquê de girassóis gigante. Estava fixado com esparadrapo, mas lindo”, desmancha-se Carol.

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A cumplicidade acelera nas pausas singelas que as duas tiram da cartola. Frestas de paraíso escavadas sobre a crosta das jornadas profissionais, esportivas, domésticas.

O maior pódio da dupla são as janelas milagrosamente abertas na sucessão de treinos, disputas, dietas, rotinas de trabalho, afazeres de casa. Elas renovam as baterias em incursões na Floresta, nas Paineiras, em gloriosos mergulhos no mar depois de o afasto derreter-lhes os tênis, em papos regidos pela diversidade carioca:

“A gente se ajusta para encontrar os amigos e curtir os vários Rios. É o nosso oxigênio”, valoriza Iara. A parceira endossa:

“Nosso entrosamento faz a diferença. Uma entende a outra. Sabemos o que é acordar às cinco para fazer um longão (treino extenso). À noite, quem chega primeiro adianta o jantar. No fim de semana, organizamos a agenda social em função dos treinos e provas. Sempre conseguimos uma brecha para confraternizar e descobrir um lugar novo”.

Aos 36 anos, Iara divide-se diariamente entre aulas de pilates que ela comanda em Botafogo, sessões de musculação, treinamentos nos arredores da enseada. Muitos deles acompanhados de Carol, embora as corredoras cultivem aspirações distintas:

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“Carol curte distâncias maiores, alta performance. Na minha vida, a corrida é uma atividade para manter a saúde, o bem-estar. Fiz da enseada de Botafogo o meu quintal”, alegra-se a mineira imersa há nove anos no cartão-postal.

Em busca de recordes e medalhas, a psicóloga militar Carol Salles, 37 anos. apura a forma no Aterro ou em Copacabana. Da infância em Cordovil ao expediente no batalhão do Centro, prevalece a obstinação de atleta por superar barreiras – de vários tipos:

“Corro desde 2008, quando não havia tanta facilidade. Nós mulheres, cada vez mais inseridas no esporte, temos de vencer muitos obstáculos só para ir correr, desde a roupa até adaptações na rotina”. Por outro lado, completa Carol, a própria atividade ajuda a superá-los:

“Além dos benefícios à saúde física e mental, a corrida é um dispositivo de conexões sociais. Por isso, muitas passaram a ampliar suas redes de apoio que, várias vezes, eram capengas. A corrida mostra como as mulheres podem superar desafios, empoderadas, impulsionadas pela energia, pela melhora da autoestima”. Iara reforça:

“A corrida, como dizem, é o mais coletivo dos esportes individuais”.

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Carol e Iara dedilham no dia a dia o espírito fraterno comum às comunidades de corredores. A reciprocidade não perde o fôlego:

“Quando começamos a namorar, eu queria correr a prova de 21 quilômetros. Carol me compreendeu, me estimulou, e eu percebi que era possível”, comemora Iara. Conquistas movidas a estímulos mútuos:

“Iara me acompanha nas loucuras que invento. Ela me apoiou, por exemplo, na ultramaratona de seis horas num circuito de 600 metros, em Macaé, há dois meses. em março. Agora uma vai ajudar a outra na Maratona do Rio. Vamos nos distribuir entre as provas de 10km, 21km e 42km”. (Completam o maior festival de corridas na América Latina, entre 8 e 11 de junho, o percurso de 5km e o Desafio: correr os 21 quilômetros da meia maratona no sábado e, dia seguinte, encarar os 42 quilômetros da maratona.)

Pergunta de um milhão de dólares: vem outra surpresa aí?

“Desta vez, não dá. A programação está intensa”, justifica Iara.

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Será mesmo? Nem uma florzinha com esparadrapo? Convém não subestimar o doping afetivo. Nele também se apoiam na guerra contra o preconceito, na defesa, em especial, da causa LGBTQIA+:

“Não vivemos uma lógica militante”, esclarece Carol. “Temos que naturalizar. A legitimação do casamento homoafetivo já completou dez anos. Mas também é importante marcar esse lugar. A gente precisa dar visibilidade às relações homoafetivas, para combater o preconceito e mostrar que isso é natural”.

Iara evoca ventos transformadores:

“Quando casamos na maratona, recebemos muitas mensagens solidárias, representativas. Legal que viramos uma referência”.

Referência daquilo que ainda produzimos de melhor. Referência de um afeto indistinto, incandescente, indivisível, despido de gênero, cor, crença, origem. Não o dos discursos protocolares, divorciados da prática, e sim o afeto materializado em pequenos grandes gestos cotidianos, no respeito às divergências, na valorização da diferença.

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Afeto como o que envernizou o tributo a Wilson das Neves numa noite enluarada de maio, há duas semanas. Reunidos no Municipal para o show de lançamento do álbum póstumo Senzala e Favela, estreia do selo Fundição, bambas como Vidal Assis, Moyseis Marques, Moacyr Luz, Roberta Sá, Zé Renato, Chico Batera, Bia Ferreira, Aurea Martins – viva Aurea Martins! – e a Velha Guarda do Império louvaram mais do que o genial baterista. Cantaram a beleza da harmonia humana, e o dever conjunto, constante, de preservá-la das garras discriminatórias.

Os afetos de Carol, Iara, Wilson das Neves e seu legado iluminam a cartografia de um amanhã melhor. Cortam o breu das desumanidades, ora evidenciadas no acúmulo de insultos racistas sofridos por Vini Jr.

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A esperança do pragmatismo econômico

A latitude das ofensas ecoadas domingo passado por quase todo o estádio do Valência reflete-se na extensão do repúdio internacional. Não obstante as toscas tentativas de culpar a vítima, autoridades esportivas e governamentais prometem converter a indignação retórica em vacinas concretas.

A inadiável imunização confronta-se com a mentalidade escravocrata resistente na sociedade contemporânea. Perpetua-se nas faces do racismo estrutural, algumas eloquentes, como os insultos de “macaco” perpetrados  contra o ex-atacante do Flamengo, outras sorrateiras.

Combatê-las exige uma coordenação de aperfeiçoamentos educativos, normativos, fiscalizadores e punitivos, com sanções esportivas mais rigorosas aos corresponsáveis pelas agressões reincidentes. Começa por compreender seu caráter multidisciplinar, transnacional, intransigente, por abraçar a sua urgência.

Tolerância zero, prega o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez. Ainda não disse como pretende aplicá-la.

O Itamaraty aguarda providências do governo espanhol e da federação de futebol. O Real Madrid afirma pressioná-la. Dirigentes admitem rever a complacência, porém não anunciam mudanças efetivas.

A esperança veste o pragmatismo econômico. Investidores graúdos, sócios dos principais campeonatos, inclusive o espanhol, perdem bilhões quando o preconceito se institucionaliza, ganha os holofotes e respinga nas reputações corporativas empenhadas em se articular à cartilha da responsabilidade socioambiental e da governança (ESG).

Por sorte, o esporte, a música, a literatura, a arte produzem inspirações redentoras. Acalentam horizontes mais leves e fraternos.

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Skate pega uma praia

Falando em leveza, Iara ganha um motivo extra para encontrar seu quintal neste fim de semana. Letícia Bufoni e outras feras do skate street colorem a Enseda de Botafogo no Red Bull Rio Conquest. Desafiam a gravidade em disputas de mata-mata, a partir das 10h, no sábado (eliminatórias) e no domingo (semifinais e final), com transmissão do perfil da Red Bull Brasil no TikTok  (os dois dias) e do SporTV 2 (só domingo).

Pão de Açúcar ao fundo, 44 skatistas, entre brasileiros e estrangeiros, duelam numa pista com obstáculos alusivos a pontos icônicos da capital fluminense. O torneio internacional chega pela primeira vez ao Rio, depois agitar Paris, em 2021, e Lisboa, no ano passado. Vencedora da edição parisiense, Letícia volta a competir depois de dez meses.

Letícia Bufoni andando de skate em pista no Rio
_________ (Divulgação/Reprodução)

Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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