Pedra do Telégrafo: pegadinha num lugar além do horizonte
Passeio ao mirante da Zona Oeste oxigena o corpo, a cabeça, a vida, desde que corrida à foto-clichê não atropele a paz pintada de verde e azul
Mal o sábado desperta, pai e filho cortam a Grota Funda atrás do lugar além do horizonte cantado pelo octogenário Rei. Barraquinhas de banana, coco, caldo de cana dedilham a cadência bucólica. O recanto da Zona Oeste pulsa imune às horas. Exala a despretensão de uma mariola à beira da estrada.
O pai desfia as bênçãos do caminho: o Sítio Burle Max, a vegetação de restinga, as iguarias caseiras que deram fama às Tias dali. A granola matinal ainda se assenta, e ele já de olho no pastel de camarão com camarão de verdade.
O filho saliva por outro banquete. Devora a expectativa de subir à Pedra do Telégrafo, cume do Morro da Guaratiba. Os 40 minutos de carro até a trilha aguçam a ansiedade. Nada comparável ao teste de paciência que o mirante lhe reservava.
A luz do outono imunda o corredor entre a Mata Atlântica e o tapete azul da Marambaia. Nenhuma estação faz o Rio tão bonito.
A calma concede um rápido intervalo. Ao pé do morro, moradores negociam vagas improvisadas em garagens, ruas, becos. Preço fixo: 20 pratas. Quem madruga estaciona na cara do gol, a 100 metros da entrada. Qualquer economia de fôlego é bem-vinda.
A trilha no Parque da Pedra Branca começa íngreme e segue assim na maior parte dos quase dois quilômetros. Não impõe dificuldade extra. Pai e filho levam meia hora. O rapaz esperava mais aventura. Nem por isso deixa de curtir o verde, a brisa, o cheiro de roça.
Fora a queima calórica, a caminhada é um respiro às crises de estimação – ética, humanitária, sanitária, socioeconômica. Um oxigênio à asfixia das tensões urbanas, do acúmulo de descasos, dos dias pálidos.
Passa das oito quando a dupla alcança o platô a 354 metros de altitude. Dele se avista duas praias selvagens – Perigosa e do Meio – ao lado de Grumari. A panorâmica enquadra, ao fundo, as orlas do Recreio e da Barra. Aquarela carioca.
Curiosamente o deslumbre não basta. É preciso alimentar o Insta. Moleza diante da fartura natural. Nem tanto. Poucos ousam voltar sem a imagem celebrizada nas redes: a pessoa se dependura numa ponta da rocha como se estivesse solta no ar. Ilusão obtida de um certo ângulo. Não à toa virou moda.
Instala-se uma corrida àquilo que a historiadora Ana Maria Maud chama de imagem-monumento: símbolo legado à posteridade. Como se a foto enganosa autenticasse a estada naquela maravilha do relevo carioca.
Logo cedo forma-se uma fila para o fake legitimado. A pegadinha se estende ao programa. Em vez de refúgio, parque temático.
Muitos não se contentam com oito ou dez poses de recordação. Rendem-se à tentação do ensaio fotográfico. Monopolizam a superfície mineral por 15, 20, 30 minutos, como se decretassem “o Maraca é nosso”.
Um fotógrafo de plantão dá corda ao desejo comum. Três por R$ 15, acena a promoção do cartaz. Vários somam o reforço profissional à ciranda de cliques. Uma rave de expressões fabricadas.
A fila empaca. “Já deu, pai”, inquieta-se sabiamente o rapaz. O cinquentão rebate: “Calma, estamos justamente fugindo da pressa. Olha a vista”.
Entre um gole d’água e um polenguinho, a conversa fiada busca compensar a mofa. Apesar das máscaras e da distância razoável, a aglomeração espreita o pedaço de paraíso.
A espera ultrapassa uma hora. “Vamos nessa, pai. Quando a foto vira uma obrigação, não faz sentido”, ensina o jovem. Ouve do pai o pensamento dominante: “Viemos até aqui, não podemos desistir agora ”. A imagem-clichê sobe à cabeça.
Enquanto o garoto tenta salvar o companheiro da hipnose coletiva, três amigas brindam o aniversário de uma delas num revezamento interminável de poses. Quando finalmente liberam o espaço, recebem um debochado aplauso da galera feita de boba.
“Esperamos mais de meia hora. É a nossa vez”, defende-se a aniversariante. A paisagem divina não apaga, claro, a confusão entre direitos e privilégios. Tampouco aplaca a indiferença escancarada na guerra conta o vírus. De que vale o paraíso sem amor?, já dizia Roberto Carlos.
“Assim não dá. Não podem alugar a pedra”, aflige-se o guia próximo do ataque de nervos. Inconformado, arrisca uma fila alternativa para acomodar seu grupo na face menos concorrida da rocha. Falta pouco para alguém introduzir a venda de senhas e camarotes.
Lá pelas onze da manhã pai e filho ganham a Pedra do Telégrafo. Tiram as fotos rapidinho. Querem reencontrar a paz pintada de verde. Àquela altura, o cheiro da mata, o compasso da roça e o pastel de camarão insinuam-se especialmente redentores.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.