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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Todo garoto merece imaginar-se Pelé ao menos uma vez na vida

Com a universalidade da fantasia, façanhas do rei representam um país idealizado, talentoso, pujante, e inspiram esforços para torná-lo menos desigual

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Atualizado em 2 jan 2023, 14h42 - Publicado em 2 jan 2023, 10h30

Fosse o futebol um sorriso, esse sorriso seria Pelé. O sorriso infinito dos apaixonados.

Poucos amores são recíprocos quanto o acalentado entre o rei e a pelota. Não tivesse a forma humana, nasceria bola, sintetizou Armando Nogueira. Como o mar absoluto do poema de Cecília, Pelé é ao mesmo tempo “o dançarino e sua dança”.

Nessa rima se eterniza sua realeza. “Acima de tudo, um estado de alma”, proclama Nelson Rodrigues, em crônica publicada pela Manchete Esportiva no inesquecível 1958. Olho clínico, Nelson fascina-se com o prodígio de 17 anos que pouco depois assombraria o globo na Suécia. De onde saíra aquela força da natureza?

O estado de graça materializa-se em músculos e cérebro à frente dos marcadores, dos colegas, da arquibancada, do tempo. Ele inventou o GPS nos gramados, admira-se o jornalista Chiche Ferro, da FoxSports argentina, no documentário Pelé, o rei desconhecido, de Ernesto Rodrigues (Canal Brasil).

Deuses abençoam Pelé com inesgotáveis atalhos, alma de poeta, tenacidade de gênio. Concedem-lhe pernas de passista, impulsão de ginasta, e sobretudo um apetite de náufrago para estufar a rede. Uma contagiante obstinação.

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A mistura transborda no recorde de 1.289 gols, mais de 400 antes dos 23 anos, 120 em 1959, aos 19. Impulsionam cinco troféus mundiais, dois pelo Santos; dois continentais; seis nacionais; e dez paulistas, nove deles seguidos, entre 1960 e 1969.

Dificilmente algum mortal baterá os maiores feitos do único jogador a vencer três Copas. Menos provável ainda é surgir novo bruxo capaz de tabelar com a canela alheia e enfileirar oponentes com a precisão moleque do videogame. Capaz de casar vitalidade, técnica, inteligência tática, transcendência artística, perfeição apolínea.

O apuro atlético revela-se irretocável na bicicleta perenizada pela célebre foto de Alberto Ferreira, do Jornal do Brasil. Não à toa a imagem acaba mais lembrada do que os 5 a 0 do escrete canarinho sobre a Bélgica, o Maraca lotado, naquele 2 de junho de 1965.

Os 37 títulos e demais números grandiosos atestam a singularidade esportiva, histórica, insuperável de Pelé. Porém nada retrata melhor sua dimensão mítica, seu fulgor dionisíaco, do que as pinturas acumuladas desde o antológico lençol sobre o zagueiro sueco na conquista do nosso primeiro caneco.

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O cartão de visitas sinaliza uma dupla soberania, consumada na década seguinte: a própria e a da seleção, movida pela primavera de craques entre 1958 e 1970. No Santos e na Amarelinha, luxuosas companhias lustram o brilho de Pelé, e vice-versa.

Ao lado de Garrincha – covardia –, Didi, Pepe, Coutinho, Dorval, Gérson, Tostão, Rivellino, Jairzinho, forma  químicas diabólicas. A maestria do drible jamais o deixa fominha. Senão perderíamos o preparo açucarado para Carlos Alberto arrematar o tri, êxtase da campanha arrebatadora.

Pelé emenda maravilhas na memorável jornada verde-amarela: a matada no peito – aérea igual o inconfundível soco –, realçada pelo lançamento do Gérson e pela pedrada certeira, na estreia, contra a Tchecoslováquia; o chute do meia da rua que raspa a trave, alívio do goleiro tcheco; a finta de corpo sobre o uruguaio Mazurkiewicz, na semifinal, mágica imune ao videoteipe.

Nem um milhão de replays esgotariam o frescor das bruxarias de Pelé. Pelo contrário. Beldades assim rejuvenescem a cada reprise. Unem gerações numa vontade insaciável de degustá-las a fio, cultuá-las, de alguma maneira alcançá-las. Drummond arredonda:

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“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol. (…) [Pelé] sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos”.

Todo garoto do planeta um dia imagina-se Pelé. Seduz-se não propriamente pelo sucesso icônico, mas pelo encontro com o impossível. Pelé configura-se um imperecível gibi.

Da várzea ao asfalto, todo garoto, de qualquer idade, sonha em incorporar seus poderes titânicos. Subvertem as leis da física sem perder a simplicidade mineira esculpida em Três Corações, hidratada no litoral paulista. Nenhum algoritmo conseguiria encará-los.

Todo garoto já fez ou fará de conta possuir as chuteiras enfeitiçadas do Camisa 10. Então aplicá-las num lance sensacional, os comes desconcertantes em câmera lenta, a música do Canal 100 ao fundo, a defesa demolida na grama, golaço, a galera explode. Todo garoto merece imaginar-se Pelé ao menos uma vez na vida.

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Tal fantasia reverbera a universalidade do plebeu que vira monarca. Nela cultiva o protagonismo cativo nas mesas de botão, nas listas canônicas, no imaginário mundial. Dela extrai milagres como a trégua no antigo Congo Belga, em 1969. Até a guerra curva-se para saudá-lo.

Sinônimo de supremacia (o surfista Carlos Burle, por exemplo, é o Pelé das ondas gigantes), o rei ao mesmo tempo descalça qualquer soberba. Carismático, simboliza heroísmos comezinhos.

O heroísmo de domar o destino e inspirar milhões de meninas e meninos pretos e pobres a perseguir futuros decentes. O heroísmo de revolucionar o futebol, de apresentar-lhe truques impensáveis e salgá-lo com a lua de mel entre potência e plasticidade. O heroísmo de encaminhar, vestido de ministro, em 1998, a emancipação dos jogadores brasileiros, com a lei que os liberta do passe.

O heroísmo, soprado pela consciência de ídolo, de manter-se flexível à avalanche de assédios, microfones, prosas nem sempre agradáveis. O heroísmo de, mesmo cansado da maratona de superatleta e pop star, preservar-se representação de um país idealizado. Eis os principais traços de sua nobreza.

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Das inúmeras marcas representadas por Pelé, compreensivelmente transformado em condão publicitário, nem a ONU é tão significativa quanto o Brasil projetado a partir de 1930. Moderno, inventivo, democrático, irresistível.

Um Brasil preconizado por Gilberto Freyre, hibridamente retratado nos quadros de Tarsila e Di Cavalcanti, nos versos de Bandeira e Vinicius, nos traços de Niemeyer, nos acordes de Pixinguinha, Cartola, Tom, João Gilberto, Roberto e Erasmo, Caetano e Gil, nas vozes de Elizeth, Elza, Gal, Elis, no teatro de Cacilda, Bibi, Boal, Dias Gomes, nos versos de Chico, Aldir, Brant, Candeia, Paulinho, na cadência de Rita Lee, Beth Carvalho, Dona Inove, nas crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto. Um Brasil cuja identidade cultural é especialmente espelhada no samba, no futebol, em Pelé.

Às reverências globais, impõe-se a simbologia doméstica. Ao vermos Pelé entortar adversários como “quem enxota um piolhento”, nas palavras rodrigueanas, ao vê-lo distribuir sem dó sua coleção de canetas, chapéus, dribles, bombas, jogadas infernais, delírio das massas mundo afora, testemunhamos a vitória do talento e da perseverança sobre desigualdades e discriminações. Identificamos um Brasil aquarelado de ímpeto, beleza, diversidade.

As façanhas de Pelé atiçam a esperança incansável de um lar mais justo, humanitário, harmônico. Legam o clamor por investimentos prioritários em educação, saneamento, saúde. Lembram a urgência de acudir milhões de pelés atormentados pela fome.

Feliz 2023!

___________

Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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