Superpoderes do mercado movimentam balança moral
Demissão no vôlei retrata calibragem da gestão de imagem corporativa aos termômetros digitais e às dinâmicas socioculturais
A demissão de Maurício Souza desperta burburinho superior à reunião de líderes sobre os ultimatos planetários. O caso acumula outros contornos emblemáticos.
Da origem aos desdobramentos, expõe dilemas, prioridades, pendores. Fervido no maniqueísmo automático das redes, o episódio também mostra o peso da gestão de imagens corporativas na balança moral.
Campeão olímpico no Rio, Maurício perdeu o emprego duas semanas depois de uma postagem de verniz homofóbico. Ironizou a linhagem bissexual do Super-Homem.
Atentos ao repúdio na internet, os patrocinadores cobraram do Minas Tênis Clube mais que a suspensão, a multa e a desculpa protocolar acordadas inicialmente. A pressão tornaria o contrato insustentável.
O técnico Renan Dal Zotto pegou o bonde. Prometeu aposentar da seleção de vôlei o central titular nos Jogos de Tóquio.
Uma parcela da sociedade considera as punições excessivas, injustas: patrulhas ideológicas, manobras de uma ditatura do politicamente correto ecoada nos tribunais online. Obra da “turma da lacração”, resumiu Maurício. A corrente solidária triplicou a quantidade de seguidores digitais do jogador.
Para outros tantos, os castigos são exemplares. Alinham-se a leis e espíritos menos tolerantes a manifestações discriminatórias – explícitas, dissimuladas, densas, prosaicas.
Desde 2019, comportamentos homofóbicos equivalem-se ao crime inafiançável de racismo (Lei 7716/1989), sujeito a cinco anos de prisão. Mas continua difícil admiti-los em cotidianos ensopados de preconceitos estruturais.
O avanço é insuficiente para erradicar discriminações naturalizadas sob a nossa gênese sociocultural. Muitos sequer as reconhecem, em parte por confundi-las com expressões do pensamento conversador.
Mesmo consagrada no mundo democrático como um direito inalienável, a liberdade de orientação sexual e identidade de gênero sofre sistemáticas violências materiais e imateriais. Variam do deboche às agressões físicas. Culminam na média de uma morte por dia, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB).
O esporte contribui duplamente para diminuí-las. Pela difusão de princípios como congraçamento, civilidade, respeito às diferenças, essenciais aos investimentos. Pelo rechaço de patrocinadores a condutas discriminatórias, ameaças às reputações no mercado.
A tática ajusta-se ao frigir da internet e às dinâmicas morais. Amplificadores online reduzem a margem a conexões com valores negativos. Filmes queimam mais rapidamente. Não à toa multinacionais ameaçaram deixar a Fifa se o saneamento prometido tardasse, depois do escândalo de corrupção em 2015.
Panos quentes curvam-se ao crescente zelo com as imagens organizacionais, calibradas ao termômetro das redes e suas vestais instantâneas. Da indústria automotiva ao agronegócio, marcas procuram ser identificadas ao lado da responsabilidade socioambiental e da governança (ESG, na sigla em inglês).
Diante das guilhotinas digitais, empresas afugentam riscos ao capital simbólico estrategicamente cultivado. Associações a intolerâncias viram criptonita: definham a vitalidade comercial.
Por tabela, esse pragmatismo de consumo joga a favor da pluralidade, da empatia. Mas a virada só vem com a educação. Nela voa a esperança de dias harmônicos, inclinados à redução de desigualdades, injustiças, violências, abraçados ao que verdadeiramente importa.
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O valor da simplicidade
Um lance periférico no futebol de areia ilustra o fôlego transformador da educação. Dez segundos pedagógicos.
Lokomotiv e Braga decidiam, mês passado, o Mundialito. Jogo duríssimo. Valia o tricampeonato e a hegemonia da modalidade.
Corria o segundo tempo quando o braço de um jogador resvalou no olho do adversário. Ele interrompeu imediatamente a disputa para se certificar de que o colega estava bem. Cumprimentaram-se, e o duelo prosseguiu. O time russo levaria a melhor: 6 a 4.
Não se viu qualquer esboço de converter o singelo incidente em vantagem. Nem o marcador tentou roubar a bola do atingido, nem o oponente simulou o exagero de uma agressão. Inspirador.
Honestidade e cortesia dispensaram o juiz, o VAR, a polêmica. A partida fluiu. Simples assim, como tem de ser. Todos ganharam: os colegas em quadra, o público, os patrocinadores.
Alguns chamam de fair play. Não passa da velha e boa educação.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.