A seleção espelhada numa conversa casual
Canarinho transita entre novas representações e o desejo do reencontro com a beleza, como a cíclica nostalgia retratada na fábula "Meia-noite em Paris"
– Hoje tem Brasil.
– Brasil?
– É, a seleção joga hoje à noite?
– Ah…
– É a estreia nas Eliminatórias? Você não vai ver?
– Pode ser, pra distrair um pouco…
– Pô, é a seleção…
– Ela não me anima mais, não. Está irreconhecível desde 2002. Pra quem viu Ronaldinho, Ronaldo Fenômeno e Rivaldo, ver agora isso….
O diálogo, travado num encontro casual entre vizinhos da Barra da Tijuca, replica-se noutros cantos da cidade, do país. Lembra a fábula “Meia-noite em Paris”, na qual Woody Allen retrata uma compulsória reverência a prodígios da geração anterior. Uma nostalgia cíclica.
A prosa provavelmente se prolongaria, não fossem a distância forçada e as máscaras. Mas deu o recado. Sintetizou o cerne da atrofia afetiva acentuada nas últimas décadas, cujas raízes encontram-se no beco do “irreconhecível”.
Sob a cadência contemporânea, a seleção desliza por um punhado de representações. Não se prende a reconhecimentos seculares. Descola-se do manequim com o qual vestia o país imaginado sob a paleta ideológica de Gilberto Freyre e os ventos nacionalistas da Era Vargas. Nelson Rodrigues costurou a etiqueta: “pátria de chuteiras”.
O epíteto ainda respira na esfera singular da Copa, quando a suspensão do tempo cotidiano, explica a antropóloga Simoni Guedes, celebra e reforça a brasilidade, ou seja, “a construção simbólica da unidade nacional” (vale a leitura de “O Brasil nas Copas do Mundo: tempo suspenso e História”). Mas a metonímia da nação idealizada perdeu fôlego à medida que a hipermidiatização e a hipermercantilização criaram novas formas de sacralizar o futebol. A pedra é cantada por craques das ciências sociais, como Ronaldo Helal, César Gordon, Antônio Jorge Soares e Micael Herschmann. O diagnóstico fundamenta o artigo “O declínio da pátria de chuteiras: futebol e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002” (Helal e Soares, 2002).
O futebol emula nossos dramas, dilemas, contrastes, observa Roberto DaMatta. Simboliza, ao lado do samba, a identidade nacional culturalmente construída. Felizmente, já não se reconhece na seleção o papel patriótico de outrora. Consequência do curso histórico, do amadurecimento cívico e do predomínio crescente dos que jogam lá fora, reflexo da esquálida retenção de talentos.
Desde os anos 1990, com o avanço da legião estrangeira entre os convocados, fracassos em Copa são parcialmente atribuídos a uma suposta desfiliação de valores e compromissos pátrios. Manifestado nos botecos, nas mídias sociais e até numa parcela da imprensa, esse discurso não resiste à preponderância do mérito esportivo sobre os carimbos no passaporte. Torna-se insustentável diante da percepção tardia de que um rendimento frustrante tem menos a ver com o êxodo decorrente das supremacias econômicas europeias e asiáticas do que com um descompasso entre a natureza da expectativa depositada na seleção e a realidade.
Da seleção, espera-se mais do que vitórias e conquistas. Espera-se beleza. Espera-se fidelidade à caligrafia futebolística da identidade brasileira imaginada, reino da inventividade. Espera-se o drible do Mané, o fulgor do Pelé. Não basta vencer, é preciso encantar.
A escola verde-amarela, não à toa batizada de futebol-arte, sedimentou-se com a sucessão de craques e títulos entre os anos 50 e 80. Difícil conservá-la autêntica, além do discurso romântico, em meio à globalização e à erupção de equipes transnacionais
Àquela altura virávamos, também para o mundo, o país do futebol. Um pedigree. Uma grife internacional. Dela deriva, direta e indiretamente, o grosso da receita recorde de quase R$ 1 bilhão contabilizada pela CBF no ano passado.
O prestígio global não rende, entretanto, dividendos financeiros e decisórios proporcionais aos clubes, grandes provedores do negócio. As arrecadações inferiores à da organização reguladora são uma jabuticaba cultivada por protecionismos de estimação, das bancadas parlamentares aos feudos políticos nos próprios clubes.
Fragilidades econômicas – do país e das agremiações – convertem a reputação dourada por cinco títulos mundiais em exportações massivas de jovens talentosos. Mil jogadores, aproximadamente, cumpriram esse destino em 2019, 14% a mais em relação ao ano anterior. Alguns deles, como o atacante Rodrigo, ex-Santos, integram ou integrarão o time que disputa a vaga para o Mundial do Qatar, em 2022. Nada diferente do roteiro do titular Philippe Coutinho: aos 18 anos, partia para a Inter de Milão. Deixava, como tantos, a saudade do não visto.
De Coutinho, Neymar e outros bambas, a galera espera, talvez acima do caneco, um encontro com o encanto, a poesia, o sonho. Espera o sal e a cor de uma cantiga de roda, de um Di Cavalcanti, um Villa-Lobos, um Pixinguinha. Espera a vibração catártica de Ivete. Espera o luar de prata, o carnaval, um refúgio das vacas magras, um refresco das aporrinhações mundanas com o time do peito. Espera o inesperado, a vertigem da arte.
Só assim, quando se funde à beleza esculpida no imaginário como uma força genuinamente brasileira, a seleção é reconhecida como tal, ou a tal. Só assim consuma o dever tácito de perpetuar o jogo dionisíaco transformado em selo de qualidade e orgulho coletivo.
Para o vizinho saudoso, a última geração fiel à genética artística foi a dos Ronaldos. Outros apontam a de 82, mais viva na memória do que certas seleções vitoriosas. Talvez ali, na improvável derrota para a Itália de Paolo Rossi, o Brasil tenha se despedido do Brasil.
Dali em diante passamos a embarcar com mais frequência num portal nostálgico equivalente ao do protagonista de “Meia-noite em Paris”. Enquanto isso, amadurecemos com a Canarinho uma ligação menos confeitada por nacionalismo, patriotismo, etnocentrismo. Como se tivéssemos acordado do sonho lúcido experimentado por Tom Cruise em “Valina sky”. Nem carecia da descarga de realismo fumegada pelo pesadelo alemão de 2014.
Lampejos como o quase-gol de Neymar contra a Bolívia realimentam o sonho. Mais comentada do que os cinco gols obrigatórios contra o inofensivo sparring, a jogada nos lembra: o futebol – em especial, o escrete canarinho – pertence menos à materialidade do placar do que ao flerte com o belo, com o imponderável. Fosse doutro jeito, os quase-gols de Pelé em 70 não ostentariam cartaz superior ao golaço na vitória de 4 a 1 sobre a Tchecoslováquia. E olha que o lançamento de Gérson e a matada no peito – que matada! – completam-se na eternidade reservada às maravilhas da literatura, da música, do cinema.
O lance exprime, tanto quanto os quase-gols do rei, a vocação da beleza ao irrepetível. Exatamente por isso cai bem repeti-lo através dos séculos. Os 80 anos de Pelé e a maratona audiovisual na pandemia são os pretextos da vez.
Afinal de contas, já disse Drummond, “o difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. Difícil é fazer um gol como Pelé”. Por pouco Neymar não fez na sexta passada. A cada pintura dessas, revalidamos um pouco a conexão com a arte, com o onírico, mesmo sob um vínculo menos ufanista com a seleção. Mesmo acordados pelo óbvio: os tempos são outros.
Noves fora, a amarelinha jamais deixará de instigar papos, sonhos, lembranças. Haveria sentido maior para existir?
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Alguns desafios à sensatez seguem, no entanto, presos ao feitiço do tempo. A avalanche do calendário espremido pela pandemia não justifica a sobreposição da estreia nas Eliminatórias com o Campeonato Brasileiro. Perdem os clubes, a seleção, o torcedor.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.